Por Eugênio Bucci em 17/3/2010 | |
Muitos apontaram o vazio silente, nas fileiras da esquerda, em relação ao que se passa hoje em Cuba. Após a fala desastrosa do presidente da República, que comparou os presos políticos em greve de fome a criminosos comuns, a indagação ganhou mais corpo: a esquerda brasileira não vai protestar contra nada disso? Entre os que levantaram a pergunta, citemos duas pessoas, apenas duas. A primeira é Fernando Barros e Silva. Ele tratou disso em sua coluna na página 2 da Folha de S. Paulo, na sexta-feira (12/3). O título era particularmente ácido, com nada além de três pontos de interrogação enfileirados: "???". Eis um trecho da coluna: "Seria demais exigir a retratação pública do presidente por igualar as vítimas de uma ditadura que liquidou seus opositores aos presos comuns de um país democrático? Seria demais pressionar o governo brasileiro para que interceda em favor de dissidentes presos arbitrariamente e/ou a caminho da morte? Seria demais reafirmar (ou assumir, no caso de alguns) a defesa da democracia e dos direitos humanos como valores universais? O silêncio de certa intelligentsia, que insiste em tratar Cuba como um caso à parte, uma ilha da fantasia rodeada de piratas, é tão cúmplice das atrocidades de Fidel e seu asseclas quanto a fala boçal de Lula. Até quando a esquerda nativa (com exceções honrosas) vai encarar a crítica à tirania cubana como uma pauta da direita? Até quando irá confundir o justo apelo dos dissidentes com a `máfia de Miami´? Até quando irão invocar avanços sociais hoje mais do que duvidosos como pretexto – aí, sim – para justificar os horrores do regime? O dissidente Guillermo Fariñas precisará morrer – ou nem isso bastará para romper a omissão criminosa?" O segundo nome que merece registro é o do filósofo Renato Janine Ribeiro, que se manifestou por meio de uma carta, publicado no Estado de S. Paulo de sábado (13/3): "Dissidente não é bandido "A política tem limites éticos. Mesmo apoiando em muitas de suas ações o governo Lula, não posso calar-me quando o presidente da República defende a repressão praticada pela ditadura cubana contra pessoas que reivindicam direitos elementares como a liberdade de expressão, de organização e de voto. Esses valores são universais e não podem estar subordinados ao ditador do momento. Muita energia foi necessária para conquistar a democracia em nosso país e em outros, de modo que não concordo que se faça pouco-caso daqueles que, pondo em risco a própria vida e a de ninguém mais, se empenham em democratizar países que jazem sob a repressão. Ditaduras são nefastas. São indefensáveis. Lutar contra elas é digno." Renato Janine Ribeiro não desafiou a esquerda a se apresentar: ele mesmo, individualmente, antecipou-se e afirmou não poder se calar quando o presidente da República defende a ditadura cubana. No mais, a ausência de protestos – e deveriam ser protestos contundentes – é no mínimo embaraçosa. Ela está aí, posta feito um monumento em praça pública. Trata-se de uma ausência material, pesada e sólida como chumbo. Mas não é por ela, nem para ela, que escrevo agora. Eu mesmo já tive ocasião de deixar clara minha indignação com o regime cubano, desde uns 20 anos, pelo menos, e não me ocupo disso nesse momento. Escrevo por outra razão, quero dizer, por algo que repousa na base desse debate: escrevo para discutir o lugar da idéia de liberdade nos debates que vêm acontecendo neste Observatório e, para isso, o episódio de Cuba vem muito a calhar. Por isso é que me valho da ditadura dos irmãos Castro como um "gancho" – ou um pretexto, ou um ponto de entrada. Vamos lá. O que é mesmo ser de esquerda? Em seu artigo, Fernando Barros e Silva, levanta um questionamento que parece coisa passageira, mas é estrutural: "Até quando a esquerda nativa (com exceções honrosas) vai encarar a crítica à tirania cubana como uma pauta da direita?" Essa obsessão, própria de um "espírito de turma" bastante enraizado nos ambientes da esquerda brasileira, esse cacoete de defender Cuba apesar de alguns "problemas" no quesito direitos humanos chegou a tal ponto que, hoje, quando falamos em uma esquerda que proteste contra o regime cubano parece que incorremos numa contradição em termos. É como se não houvesse nem pudesse haver gente de esquerda que não batesse palmas para as prisões cubanas. Assim, o apoio incondicional à ilha virou um critério para separar o que é ser "de esquerda" do que é ser "de direita". É irracional, mas ficou assim mesmo. Alguém que se insurja contra as prisões, as perseguições e as execuções em Cuba só pode ser "de direita". Logo, nada mais automático: as dezenas, centenas de intelectuais "de esquerda" não assinarão um documento contra Fidel e Raul Castro porque, no instante seguinte, serão vistos como correia auxiliar da máfia asquerosa de Miami e, aí, terão passado para o campo da direita. O que lhes seria insuportável. Com medo do insuportável, com medo de serem apontados na rua como gente a serviço da direita, protegem-se em desculpas táticas. Costumam ponderar que Cuba é uma "questão complexa". Culpam o imperialismo pela falta de democracia em Cuba – sem se dar conta de que, assim, admitem que não há democracia em Cuba. Insistem nas tais "conquistas sociais" do regime de Havana: postos de saúde, escolas, moradia e outros benefícios que já não podem ser bem mensurados, pois não há estatísticas confiáveis. Entre as "conquistas sociais" jamais incluem os direitos políticos, como fazer oposição, votar, criticar, pensar diferente, escrever e publicar opiniões divergentes, viajar para fora do país e, uma vez fora do país, falar mal do governo livremente. A boca pequena, chamam a tudo isso de pretensões pequeno-burguesas; chamam de veleidades que, para o povo, não fariam a menor diferença: o povo gosta é de comida, quem gosta de liberdade é intelectual (de direita, naturalmente). É verdade que até comida andou faltando na ilha, mas isso eles não comentam. Uma vez eu disse a um grande amigo, defensor ferrenho do tal socialismo castrista, que numa penitenciária decente os presos podem comer três vezes ao dia, ter boas camas, celas limpas e até dentista de plantão e que, não obstante, todos estão encarcerados, não dispõem de liberdade. Apesar da agressividade do meu argumento – que comparou Cuba a uma penitenciária – o meu amigo até concordou, mas respondeu que preferia fazer suas objeções diretamente aos burocratas, em Havana, com os quais sempre manteve boa convivência. Até hoje, ele se recusa a fazer críticas públicas. Por quê? A pergunta nos ajuda a aprofundar um pouco mais a investigação dessa idolatria de Fidel Castro entre homens e mulheres tão esclarecidos e de espírito crítico tão afiado. Quando seus argumentos se esboroam, eles finalmente se refugiam numa adaptação superficial do conceito de luta de classes. Falam que, no fundo, o que existe hoje no mundo são dois, e apenas dois lados: o primeiro é aquele do imperialismo ianque (a direita, claro); o segundo lado é o de todos aqueles que são contra o imperialismo ianque (a esquerda e alguns agregados conjunturais). Simplista, não? Pois é assim que veem. A partir disso, afirmam que não vão "dar força para a direita". Pelos mesmos motivos, não criticam os excessos do Irã e da Venezuela, como se sabe. Afinal, são todos anti-imperialistas e, conseqüentemente, aliados. Mais liberdade, mais justiça social Indo ao ponto: quem é um preso político em greve de fome para ousar desequilibrar o jogo a favor do imperialismo? A mesma mentalidade responde, com seu silêncio servil: ele não é ninguém, ele que morra e não nos aborreça. Segundo esse padrão de valores morais, a liberdade até que é boa, mas não pode ser assim tão universal. Ele deve depender da opinião política do freguês. Se o sujeito é contra Fidel Castro, não tem direito a passaporte, que fique bem claro. Renato Janine Ribeiro, quando afirma que "liberdade de expressão, de organização e de voto são valores universais, que não podem estar subordinados ao ditador do momento", expõe a ferida. E sabe que expõe. A mesma ferida, a mesma postura obscurantista, não se restringe a Cuba, evidentemente. Ela passa por aqui, bem próxima de nós, e dá o tom de muitos dos debates deste Observatório. Eu mesmo tenho sido testemunha. Quando critico uma conduta jornalística de algum grande veículo, colho aplausos ideológicos dos que, na verdade, são contrários à tal "grande mídia" e identificam a instituição da imprensa com os órgãos mais tradicionais, cometendo um erro primário (a instituição da imprensa, eu sempre repito, é maior, mais alta e mais funda que a mera somatória dos veículos). De outro lado, quando defendo a liberdade dos grandes jornais contra os interesses do governo, recebo ataques dos que me acusam de defender as elites, num outro erro crasso que cometem (não sabem que, ou bem a liberdade existe para todos, de modo universal, ou não existe para ninguém). Isso não significa que eu queira brigar com leitores. De jeito nenhum. O meu papel é apenas alertar. Muitas vezes, sem se dar conta, alguns defendem uma lógica segundo a qual os "benefícios sociais" (luz elétrica, escola, hospital etc.) são mais importantes que as liberdades. Segundo esse modo de ver as coisas, se há jornalistas abusando da liberdade para atacar um governo que promove os "benefícios sociais", é preciso fechar um pouco a torneira dessa liberdade aí. O engano é colossal. Seus adeptos não pararam para pensar que não há um só caso na História (com "H" maiúsculo, vá lá) em que algum benefício social tivesse resultado de alguma restrição política. Sempre o que se viu foi o contrário. A liberdade, quando garantida para todos, gera justiça social. Quanto mais liberdade, mais justiça social. Não há um único episódio em que a liberdade tenha obstruído a justiça social. Os chamados "benefícios sociais" não implicam e não podem implicar "sacrifícios políticos". Ninguém sério acredita nesse embuste, a não ser em ilhas da fantasia – ou do pesadelo. Morrer de fome, fome de liberdade O cenário no Brasil fica um pouco mais grave quando os ataques contra a liberdade de imprensa brotam de setores em aliança com o Poder Executivo. Em defesa de interesses de governo, alguns, em nome do povo, da sociedade civil ou dos movimentos sociais, advogam o controle estatal dos conteúdos jornalísticos. Outra vez, não sabem o que fazem. Não sabem que esse tipo de histeria populista pode gerar bases sociais para medidas autoritárias – o que seria um desastre. Governo – bom o mau, não importa – deve ser fiscalizado pela imprensa. Isso não faz dele um inimigo da imprensa, nem faz da imprensa a sua inimiga. Apenas é assim que a democracia funciona melhor. Sem compreender essa dinâmica, muitos acalentam como utopia uma ordem totalitária – sem ter consciência disso. Quanto às autoridades do governo, estas não podem dizer que não têm essa consciência. Quando silenciam diante de manifestações agressivas contra a liberdade de imprensa, estão agindo de má fé e ferindo os princípios democráticos. O pior que pode acontecer é um governo que estimule a intolerância contra jornalistas. Fiquemos atentos. A liberdade, é bom a gente saber, não existe para os que concordam com o governo, seja qual for o governo. Ela existe para assegurar o lugar dos que divergem, dos que criticam, dos que querem mudar tudo. Defender a liberdade é defender a voz dos que não concordam – e defender a voz dos que não concordam é defender a nossa liberdade, mesmo quando nós mesmos concordamos com o governo. Nós só somos livres quando nossos adversários são livres. Se fosse o oposto, quero dizer, se se tratasse de garantir apenas os direitos dos que concordam, qualquer Fidel Castro seria um defensor da liberdade. Qualquer Fidel Castro é capaz de conceder até mesmo passaporte para aqueles que o bajulam. O que faz a diferença é defender o lugar dos que fazem oposição. Eis aí o primeiro compromisso dos que dizem defender a imprensa: assim como o primeiro dever do jornalista é ser livre, o primeiro dever dos que defendem a imprensa é defender a liberdade do jornalista. Quando se diz que a liberdade de imprensa é motor e indício das demais liberdades, é disso que se trata. Em Cuba não existe a liberdade de imprensa, assim como não existem outras liberdades. E, mesmo assim, alguns ainda insistem em dizer que aquilo lá é defensável. Sim, há uma perspectiva de esquerda para fazer oposição à ditadura em Cuba. E essa perspectiva é a defesa radical da idéia de que a pessoa humana pode e deve ser livre. Não é pedir tanto assim. Mas a esquerda brasileira logrou essa façanha memorável, qual seja, a de deixar, a de entregar de bandeja toda a agenda da liberdade para os representantes da direita. Com isso, perdeu a esquerda. Com isso, perdeu a liberdade. Com isso, perdeu a nossa democracia. Mas vamos em frente. E façamos figa para que, em Cuba, ninguém mais morra de fome. De fome de comida. De fome de liberdade. Fonte: Observatório da Imprensa www.observatoriodaimprensa.com.br
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domingo, 21 de março de 2010
Cuba, esquerda e liberdade
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