quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Tempo de matar cavalos



Coluna de Juremir Machado da Silva, publicada hoje (25/02) no Correio do Povo:




Meu avô era um sábio analfabeto. Certas coisas ele não compreendia: as mulheres que via na televisão bronzeando-se ao sol do meio-dia e homens cansando cavalos inutilmente. Antes de os cientistas darem o alerta ele já conhecia os perigos do sol para a pele dos humanos e para o fôlegos dos animais. Meu pai seguia a mesma lei: no verão, não se encilhava cavalo das 11 horas da manhã até quatro e meia da tarde. Salvo extrema necessidade. Por isso, levantavam muito cedo. As principais lides campeiras tinham de ser feitas antes de o sol ganhar o alto do céu. Andar a cavalo sem necessidade no calor era para eles coisa de gente da cidade. Pior do que isso, era algo condenável. Bárbaro.

As notícias de que dois cavalos morreram na tal cavalgada do mar horrorizariam meu avô e meu pai. Eles adoravam cavalos. Cuidavam deles com muito carinho. Veriam nessa exibição de cavaleiros urbanos, num dos verões mais quentes dos últimos tempos, um exibicionismo despropositado, uma falta de conhecimento escandalosa e uma maldade intolerável com os bichos. Para quê? Mais espantoso é o lema da brincadeira deste ano: “mulheres a cavalo pelo Rio Grande”. Um gaúcho verdadeiro, da campanha, diria com algum deboche: parem com isso, soltem os cavalos pelo Rio Grande. Com um solaço desses só há uma coisa a fazer: ficar mateando ou sesteando embaixo de um cinamomo. O resto é frescura de gente maturranga.

A secretária da Cultura, Mônica Leal, está contribuindo para maltratar cavalos na beira do mar. Ela é entusiasta desse tipo de ação cultural. Enquanto ela ajuda a estafar cavalos, sentindo-se uma nova Anita, a cultura do Rio Grande do Sul estrebucha. A sala de cinema Norberto Lubisco foi fechada. Tem cinema no shopping. Voltaire Schilling, um dos nossos intelectuais mais brilhantes e tradicionais, foi demitido da direção do Memorial do Rio Grande do Sul. Parece que ele não tinha o que conversar com a chefe. Afinal, não é de andar a cavalo na praia com sol quente. A casa está caindo, os cavalos morrendo, o circo pegando fogo. Mas a secretária Mônica Leal está firme na montaria. Sempre. Ela é dura na queda. Corresponde a todos os clichês imagináveis.

Agora, entre nós, há sem dúvida um ponto obscuro, um elemento que exige investigação séria: por que mesmo Mônica Leal tornou-se secretária da Cultura? É um tempo estranho este. Quando não há mais necessidade alguma de movimento, todos querem se deslocar. Especialmente pelos meios mais anacrônicos. Pode haver algo mais excitante do que permanecer no lombo de um cavalo, com o sol a pino, até o bicho morrer? Tudo isso em nome da tradição! Os franceses do século XVIII usavam perucas empoadas. O Ministério da Cultura da França devia lutar pela recuperação dessa tradição eliminada pela modernidade. Vou comprar um cavalo para matar na próxima cavalgada.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Quem era terrorista?

por Emir Sader


À falta de outros argumentos e propostas, com um mínimo de consistência, os opositores reiteram a imagem de “terrorista” de Dilma.

Quem era terrorista: a ditadura militar ou os que lutávamos contra ela? Dilma estava entre estes, o senador José Agripino (do DEM, ex-PFL, ex-Arena, partido da ditadura militar), entre os outros.

O golpe militar de 1964, apoiado por toda a imprensa (com exceção daÚltima Hora, que recebeu todo o peso da repressão da ditadura), rompeu com a democracia, a destruiu em todos os rincões do Brasil, e instaurou um regime de terror – que depois se propagou por todo o cone sul do continente, seguindo seu “exemplo”.

Diante do fechamento de todo espaço possível de luta democrática, grandes contingentes de jovens passaram à clandestinidade, apelando para o direito de resistência contra as tiranias, direito e obrigação reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Enquanto nos alinhávamos do lado da luta de resistência democrática contra a ditadura, os proprietários das grandes empresas de comunicação – entre eles os Frias, os Marinhos, os Mesquitas -, os políticos que apoiavam a ditadura – agrupados na Arena, depois PFL, agora DEM, como, entre tantos outros, o senador José Agripino –, grandes empresários nacionais e estrangeiros, se situavam do lado da ditadura, do regime de terror, da tortura, dos seqüestros, dos fuzilamentos, das prisões arbitrárias, da liquidação da democracia.

Quem era terrorista? Os que lutavam contra a ditadura ou os que a apoiavam? Os que davam a vida pela democracia ou os que se enriqueciam à sombra da ditadura e da repressão? Os que apoiavam e financiavam a OBAN ou aqueles que, detidos arbitrariamente, eram vitimas da tortura nas suas dependências, fuzilados, desaparecidos?

Quem era terrorista? José Agripino ou Dilma? Os militares que destruíram a democracia ou os que a defendiam? Quem usava a picanha elétrica, o pau-de-arara, contra pessoas amarradas, ou quem lutava, na clandestinidade, contra as forças repressivas? Quem era terrorista: Iara Iavelberg ou Sergio Fleury? Quem estava do lado da Iara ou quem estava do lado do Fleury? Dilma ou Agripino? Quem estava na resistência democrática ou quem, por ação ou por omissão, estava do lado da ditadura do terror?


do site www.cartamaior.com.br

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Serra, o deletério

Do blog de Luis Nassif:
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Por que José Serra vacila tanto em anunciar-se candidato?
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Para quem acompanha a política paulista com olhos de observador e tem contatos com aliados atuais e ex-aliados de Serra, a razão é simples.
Seu cálculo político era o seguinte: se perde as eleições para presidente, acaba sua carreira política; se se lança candidato a governador, mas o PSDB consegue emplacar o candidato a presidente, perde o partido para o aliado. Em qualquer hipótese, iria para o aposentadoria ou para segundo plano. Para ele só interessava uma das seguintes alternativas: ele presidente ou; ele governador e alguém do PT presidente. Ou o PSDB dava certo com ele; ou que explodisse, sem ele.
Esta foi a lógica que (des)orientou sua (in)decisão e que levou o partido a esse abraço de afogado. A ideia era enrolar até a convenção, lá analisar o que lhe fosse melhor.
De lá para cá, muita água rolou. Agora, as alternativas são as seguintes:

1. O xeque que recebeu de Aécio Neves (anunciando a saída da disputa para candidato a presidente) demoliu a estratégia inicial de Serra. Agora, se desiste da presidência e sai candidato a governador, leva a pecha de medroso e de sujeito que sacrificou o partido em nome de seus interesses pessoais.

2. Se sai candidato a presidente, no dia seguinte o serrismo acaba.
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O balanço que virá
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O clima eleitoral de hoje, mais o poder remanescente de Serra, dificulta a avaliação isenta do seu governo. Esse quadro – que vou traçar agora – será de consenso no ano que vem, quando começar o balanço isento do seu governo, sem as paixões eleitorais e sem a obrigatoriedade da velha mídia de criar o seu campeão a fórceps. Aí se verá com mais clareza a falta de gestão, a ausência total do governador do dia-a-dia da administração (a não ser para inaugurações), a perda de controle sobre os esquemas de caixinha política.
Hoje em dia, a liderança de Serra sobre seu governo é próxima a zero. Ele mantém o partido unido e a administração calada pelo medo, não pelas ideias ou pela liderança.
Há mágoas profundas do covismo, mágoas dos aliados do DEM – pela maneira como deserdou Kassab – -, afastamento daqueles que poderiam ser chamados de serristas históricos – um grupo de técnicos de alto nível que, quando sobreveio a inércia do período FHC-Malan, julgou que Serra poderia ser o receptador de ideias modernizantes.
Outro dia almocei com um grande empresário, aliado de primeira hora de Serra. Cauteloso, leal, não avançou em críticas contra Serra. Ouviu as minhas e ponderou uma explicação que vale para todos, políticos, homens de negócio e pensadores: “As ideias têm que levar em conta a mudança das circunstâncias e do país”. Serra foi moderno quando parlamentar porque, em um período de desastre fiscal focou seu trabalho na responsabilidade fiscal.
No governo paulista, não conseguiu levantar uma bandeira modernizadora sequer. Pior: não percebeu que os novos tempos exigiam um compromisso férreo com o bem estar do cidadão e a inclusão social. Continuou preso ao modelito do administrador frio, ao mesmo tempo em que comprometia o aparato regulatório do Estado com concessões descabidas a concessionárias.O castigo veio a cavalo. A decisão de desviar todos os recursos para o Rodoanel provocou o segundo maior desastre coletivo da moderna história do país, produzido por erros de gestão: o alagamento de São Paulo devido à interrupção das obras de desassoreamento do rio Tietê. O primeiro foi o “apagão” do governo FHC.
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O fim das ideias
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O Serra que emergiu governador decepcionou aliados históricos. Mostrou-se ausente da administração estadual, sem escrúpulos quando tornou-se o principal alimentador do macartismo virulento da velha mídia – usando a Veja e a Folha – e dos barra-pesadas do Congresso. Quando abriu mão dos quadros técnicos, perdeu o pé das ideias. Havia meia dúzia de intelectuais que o abastecia com ideias modernizantes. Sem eles, sua única manifestação “intelectual” foi o artigo para a Folha criticando a posição do Brasil em relação ao Irã – repetindo argumentos do seu blogueiro -, um horror para quem o imaginava um intelectual refinado.
É bobagem taxar o PSDB histórico de golpista. Na origem, o partido conseguiu aglutinar quadros técnicos de alto nível, de pensamento de centro-esquerda e legalistas por excelência. E uma classe média que também combateu a ditadura, mas avessa a radicalizações ideológicas.
Ao encampar o estilo Maluf – virulência ideológica (através de seus comandados na mídia), insensibilidade social, (falsa) imagem de administrador frio e insensível, ênfase apenas nas obras de grande visibilidade, desinteresse em relação a temas centrais, como educação e segurança – Serra destruiu a solidariedade partidária criada duramente por lideranças como Mário Covas, Franco Montoro e Sérgio Motta.
Quadros acadêmicos do PSDB, de alto nível, praticamente abandonaram o sonho de modernizar a política e ou voltaram para a Universidade ou para organizações civis que lhe abriram espaço.
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O personalismo exacerbado
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Principalmente, chamaram a atenção dois vícios seus, ambos frutos de um personalismo exacerbado – para o qual tantas e tantas vezes FHC tinha alertado.
O primeiro, a tendência de chamar a si todos os méritos, não admitir críticas e tratar todos subordinados com desprezo, inclusive proibindo a qualquer secretário sequer mostrar seu trabalho. Principalmente, a de exigir a cabeça de jornalistas que o criticavam.
O mal-estar na administração é geral. Em vez de um Estadista, passaram a ser comandados por um chefe de repartição que não admite o brilho de ninguém, nem lhes dá reconhecimento, não é eficiente e só joga para a torcida.
O segundo, a deslealdade. Duvido que exista no governo Serra qualquer estrela com luz própria que lhe deva lealdade. A estratégia política de FHC e Lula sempre foi a de agregar, aparar resistências, afagar o ego de aliados. A de Serra foi a do conflito maximizado não por posições políticas, mas pelo ego transtornado.
O uso do blogueiro terceirizado da Veja para ataques descabidos (pela virulência) contra Geraldo Alckmin, Chalita, Aécio, deixou marcas profundas no próprio partido.
Alckmin não lhe deve lealdade, assim como Aloizio Nunes – que está sendo rifado por Serra. Alberto Goldmann deve? Praticamente desapareceu sob o personalismo de Serra, assim como Guilherme Afif e Lair Krähenbühl – sujeito de tão bom nível que conseguiu produzir das poucas coisas decentes do malufismo e não se sujar.
No interior, há uma leva enorme de prefeitos esperando o último sopro de Serra para desvencilhar-se da presença incômoda do governador.
O que segura o serrismo, hoje em dia, é apenas o temor do espírito vingativo de Serra. E um grupo de pessoas que será varrido da vida pública com sua derrota por absoluta falta de opção. Mas que chora amargamente a aposta na pessoa errada.
Aliás, se Aécio Neves for esperto (e é), tratará de resgatar esses quadros para o partido.
Saindo candidato a presidente e ficando claro que não terá chance de vitória, o PSDB paulista se bandeará na hora para o novo rei. Pelas possibilidades eleitorais, será Alckmin, político limitado, sem fôlego para inaugurar uma nova era. Por outro lado, o PT paulista também não logrou se renovar, abrir espaço para novos quadros, para novas propostas. Continua prisioneiro da polarização virulenta com o PSDB, sem ter conseguido desenvolver um discurso novo ou arregimentado novas alianças.
O resultado final será o fim da era paulista na política nacional, um modelo que se sustentou décadas graças ao movimento das diretas e à aliança com a velha mídia.
Acaba em um momento histórico, em que o desenvolvimento se interioriza e o monopólio da opinião começa a cair.A história explica grande parte desse fim de período. Mas o desmonte teria sido menos traumático se conduzido por uma liderança menos deletéria que a de Serra.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

51% das escolas de jornalismo reprovadas

do site www.observatoriodaimprensa.com.br

Quem foi que errou?

Alberto Dines

O assunto foi manchete da Folha de S.Paulo, chamada destacada noJornal do Brasil, O Globo e pequena no Estado de S.Paulo. Não é para menos: 23% dos cursos superiores de engenharia elétrica, mecânica, economia e jornalismo avaliados pelo Ministério da Educação não oferecem condições adequadas de ensino.

O mais grave da notícia – pelo menos no tocante a quantidades – só foi destacado por O Globo: o pior desempenho foi dos cursos de jornalismo, que tiveram um índice de reprovação de 51% !

O não dito é ainda mais preocupante: a imprensa foi a última a saber. Surpreendida, como sempre, incapaz de prevenir e antecipar. Jamais investigou aquilo que lhe diz respeito. Deu as costas tanto ao seu interesse como ao interesse público.

Essa é a grande verdade: as empresas jornalísticas não estão minimamente interessadas em acompanhar a produção da matéria-prima essencial para alimentar a sua qualificação: recursos humanos. Fazem aqueles cursinhos de treinamento para badalar os resultados, aproveitam os mais expeditos, cumprem a lei do diploma e o resto que se dane.

Combinação de descaso com inapetência, ambos alimentados pelo interesse pecuniário: fiscalizar as escolas de jornalismo significa antes de tudo denunciar o descalabro do ensino superior privado, hoje um dos grandes anunciantes da mídia diária. Dois dos maiores jornais brasileiros (Folha e Globo) ostentam entre os seus colaboradores regulares o lobista-mor do ensino superior privado, Arnaldo Niskier. E isto não acontece por acaso ou em função do talento do escriba: é acerto mesmo – toma lá, dá cá.

A divulgação desses dramáticos resultados confirma o que este Observador vem dizendo aqui, desde 1997:

  • O ensino do jornalismo precisa ser reexaminado. Professor de disciplinas técnicas deve ser jornalista, com militância profissional reconhecida e comprovada (além dos demais atributos acadêmicos).
  • Uma escola de jornalismo deve coexistir com um projeto jornalístico regular e permanente. Não se ensina medicina sem um hospital, clínica ou ambulatório.
  • A pós-graduação em jornalismo é uma necessidade. É preciso separá-la definitivamente da pós em comunicação. A base é comum mas são matérias distintas, assim como farmacologia e medicina. O orientador de monografias ou teses sobre jornalismo deve ser um professor com experiência comprovada em redações para impedir que os trabalhos de pós-graduação em jornalismo continuem a conter as asneiras que serão reforçadas em trabalhos posteriores.
  • O provão veio para ficar. Se algumas definições precisam ser reexaminadas, que sejam reexaminadas. Se alguns critérios precisam ser revistos, que sejam revistos. Mas o processo regulador e fiscalizador como um todo não pode ser revertido. Ser contra o provão hoje é o mesmo do que proclamar-se contra a reforma do Judiciário [veja rubrica Diretório Acadêmico, nesta edição].

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Fernando Henrique Cardoso precisa de amigos



texto de Gilson Caroni Filho

Em seu texto “Luto e Melancolia", Freud diz que manifestações melancólicas assumem várias formas clínicas, se caracterizando, entre outros sintomas, "por uma depressão profundamente dolorosa, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, diminuição do sentimento de auto-estima e inibição de todas as atividades." A identificação com o objeto perdido é inevitável e, na medida em que não consegue incorporação simbólica, o que sobra ao sujeito é a identificação com o vazio de um pai ausente.

Se a psicanálise sofre hoje contestações de diferentes ordens, as palavras do seu criador sobre o comportamento melancólico se encaixam como uma luva para o amontoado de sandices que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu e disse no último domingo, 7/02, tentando deter e repudiar a impopularidade que o persegue desde o segundo mandato.

Há alguns anos, Carlos Heitor Cony, em artigo na Folha de São Paulo, não poupou palavras para melhor definir o “príncipe dos sociólogos: "Diziam seus admiradores que FHC era uma cabeça, um intelectual, um produtor de coisas inteligentes. Sua exposição no cargo mais alto do país rebaixou-o à dimensão de um demagogo banal, incapaz de articular um argumento alem do insulto aos que não acreditam nele e o acusam inclusive de improbidade."

Isso é FHC. A exigência egóica de ser admirado o torna, paradoxalmente, um líder sem liderados. Um prócer a ser evitado em anos eleitorais. Para quem acredita que fez um grande favor ao mundo nascendo, sua irritabilidade é permanente e justificada. Afinal, deve ser duro para quem esteve no poder durante oito anos, constatar que o resto do mundo político não reconhece sua importância. Pior, o que ganha realce são os erros grosseiros de um dirigente que governou de acordo com os humores do capital financeiro.

Seu governo passou para a história como um modelo que acentuava a exclusão social e penalizava as classes de menor renda. A estratégia de estabilização de preços baseada na captação de capital externo de curto prazo, através da sobrevalorização da moeda e da manutenção de elevadas taxas de juros, levou o país a níveis de desemprego sem precedentes, à desarticulação da estrutura produtiva e à deterioração do tecido social no campo e na cidade.

O mau desempenho do comércio brasileiro na época foi minuciosamente construído pela equipe de FHC que, realizando uma abertura irresponsável da economia, pôs em prática políticas monetárias e cambiais que minaram em grande parte nossa capacidade de competição internacional.

Mostrando a miopia fiscalista que o orienta até hoje, Cardoso escreveu em seu artigo (“Sem medo do passado”), publicado no Globo: "Esqueceu-se [Lula] dos ganhos que a privatização do sistema Telebrás trouxe para o povo brasileiro, com a democratização do acesso à internet e aos celulares, do fato de que a Vale privatizada paga mais impostos ao governo do que este jamais recebeu em dividendos quando a empresa era estatal."

A entrega do patrimônio público ainda é apresentada como fórmula eficaz de fazer caixa. O que FHC faz questão de esquecer faz parte de sua história: grande parte do programa de privatização brasileiro foi financiada pelo BNDES. No cassino tucano, muitas empresas privatizadas não queriam fazer investimento aqui e se aproveitavam de polpudos créditos que também beneficiavam transnacionais já instaladas no país. O argumento utilizado era o de que a vinda desses setores permitiria agregar elementos de financiamento ao desenvolvimento nacional.

Quando se lê um artigo assim, descontextualizado, mal costurado em seus argumentos, é que nos damos contas da importância de olhar pelo retrovisor. É ele que sinaliza as perspectivas do futuro. Nesse ponto, o texto de Cardoso é didático, quase leitura obrigatória.

FHC sabe que a grande mídia corporativa exercerá o prestimoso papel de guiar suas mãos na hora de legitimar a irrelevância dos seus escritos. Somente os exércitos de colunistas destacados pelas famílias que controlam os meios de comunicação garantem sua vida política vegetativa.

Quando compara a ministra Dilma Rousseff a um boneco manipulado pelo presidente Lula não faz qualquer ponderação política, apenas evidencia que sua cabeça está longe de ser privilegiada. É uma mente que destila bile (que está na raiz da palavra melancolia) para desqualificar seus adversários. É o menestrel da política pequena buscando a facilidade da ribalta midiática.

Antes de dizer que “o PT “tenta desconstruir o seu mandato”, o ”príncipe” deveria dedicar mais tempo à leitura do que andaram falando sobre seu governo as principais lideranças do seu partido, em especial o governador de São Paulo. Uma boa sugestão seria o livro “Conversas com Economistas Brasileiros II", que a Editora 34 lançou em 1999. Lá ele encontraria o seguinte trecho:

“A política cambial do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso foi um desastre gratuito e total. Foi resultado de pouca reflexão analítica de seus condutores. Suas conseqüências foram devastadoras em muitas áreas da economia, inclusive comprometendo as metas fixadas no processo de privatização."

Essa crítica, das mais contundentes feitas por um economista que participou dos dois mandatos do governo FHC, é de José Serra em entrevista a dois professores da FGV, Guido Mantega e José Márcio Rego. E agora, quem é o boneco de quem? Nem mesmo um governador que submergiu com as enchentes em São Paulo, levando com ele a suposta capacidade gerencial do tucanato, pôde endossar a política arrasada do ex-presidente. O que esperar da oposição? A compaixão que deve ser concedida aos incapazes?

As palavras do ex-presidente devem ser vistas como movimentos de descompressão da realidade. Quando, a partir da melancolia e solidão de sua maturidade, um ator político faz a volta à infância, o ridículo se apodera do cenário. Fernando Henrique precisa de amigos.



Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil


Grande mídia está isolada do Brasil


Trabalhando em algumas capitais estaduais ou na Praça dos Três Poderes, em Brasília, os chamados “formadores de opinião” da grande mídia – sobretudo jornais e emissoras de TV – acabam por se isolar do cotidiano da maioria da população brasileira. Acredito que faria muito bem a eles viajar, periodicamente, pelo interior do Brasil. Não importa a região, o estado ou até mesmo as cidades visitadas. A exceção talvez seja o interior de São Paulo, área onde são distribuídos dois dos três jornalões que se consideram nacionais.

Os “formadores de opinião” deveriam aproveitar a viagem e puxar prosa com gente comum em locais como postos de gasolina, restaurantes de beira de estrada (ou não), hospedarias, botequins, museus, igrejas... E, sobretudo, ouvir. Ouvir quais são as fontes de informação preferidas, com o que se preocupa, quais informações interessam e qual a visão que essa gente comum tem do país e de seus problemas.

Exemplos: perguntado sobre o porquê de as TVs permanecerem ligadas 24 horas no saguão e no restaurante de um hotel de nível médio, o garçom respondeu: “É norma do hotel, mas ninguém aguenta. É só notícia ruim. Mas também ninguém presta atenção. Fica aí falando sozinha...”. Ou o morador que opina sobre o serviço de som da igreja matriz que “entra no ar” várias vezes ao dia: “É bom porque dá notícia tanto boa como ruim, e a gente pode acreditar”.

Se a hybris que aflige a maioria dos jornalistas permitisse, os “formadores de opinião” constatariam que seu celebrado poder – se algum dia, de fato, existiu – está sendo minado pela internet, acessível através de uma avalanche de novas tecnologias e por uma consciência ainda difusa de que não se pode acreditar, sem mais, no que diz a televisão, o jornal e o rádio, nessa ordem.

Os “formadores de opinião” seriam ainda surpreendidos com a renovada valorização da mídia local, seja o velho serviço de alto-falante da igreja matriz, os barulhentos carros de som que percorrem as ruas das cidades ou as rádios comunitárias, em boa parte vinculadas a alguma denominação religiosa.

E os jornais?

Pergunte a um morador qualquer do interior do País se ele conhece – não se lê – algum de nossos jornalões que se dizem nacionais. A grande maioria não conhece e, portanto, não lê. Procure saber qual o reparte que chega a determinada localidade do maior jornal do estado – para assinantes ou para venda avulsa. Dez exemplares (ou menos) para cidades pequenas e até médias.

Essas respostas certamente darão sentido ainda mais concreto aos impressionantes números divulgados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC), no início deste mês, relativos ao ano de 2009: a circulação média da ‘Folha de S.Paulo’ é de 295 mil exemplares/dia e caiu 5%; do jornal ‘O Globo’, de 257 mil e caiu 8,6%; e do ‘Estado de S.Paulo’, de 213 mil e caiu 13,5% (ver ‘Indústria de jornais – Circulação diminui em 2009’. Ver em ‘Mais na web’).

“Tudo continuará como sempre esteve”

Essas “impressões de viagem” vêm sendo confirmadas há anos e sempre recolocam a eterna questão do poder e da importância da mídia tradicional na formação da opinião pública, incluída aqui a onipresente televisão (ver ‘A soberania onipresente da TV’ e ‘Lições sabidas e nem sempre lembradas’, nos links do ‘Mais na web’).

Não é novidade a supremacia das preocupações locais sobre as regionais e as nacionais, vale dizer, das questões próximas sobre aquelas mais distantes. É apropriado transcrever um parágrafo publicado no Observatório da Imprensa dois anos atrás:

“Nada é mais importante para o cidadão comum do que aquilo que ocorre a seu lado, com seu vizinho; e que pode, portanto, acontecer com ele próprio. A sociabilidade é construída a partir dos temas locais e regionais. Isso potencializa o papel da rádio comunitária, da FM e dos jornais locais e regionais (quando existem). A agenda midiática nacional de entretenimento ou jornalismo (televisiva, sobretudo) interage com a temática local, mas ocupa um indisfarçável segundo plano.”

Ao contrário da grande mídia que insiste em acreditar que o cidadão comum está o tempo todo seguindo, como twitteiro, o que fazem em Brasília o presidente e seus ministros, os deputados federais e os senadores, e os juízes do STF, ele, na verdade, está seguindo o que fazem os políticos mais próximos de sua vizinhança e parece perceber a capital federal como uma cidade de ficção, habitada por políticos necessariamente corruptos e gente diferente do resto da população do País.

Se essas “impressões” estiverem corretas, é de se esperar alguma mudança no comportamento da grande mídia?

No caso dos jornalões, certamente não. Seu crescente “isolamento” da maioria da população transformou-se em estratégia de sobrevivência no mercado. Essa é uma das razões porque seus ‘formadores de opinião’ procuram agradar a um grupo cada vez mais reduzido de pessoas. O rádio deverá ficar cada vez mais local e regional. E a televisão onipresente, mas com a audiência em queda, parece se agarrar à espetacularização de toda a sua programação. E, com isso, despenca sua credibilidade.

Novos tempos. Nova mídia. Novos atores. Novos poderes. E muitos ainda acreditam que tudo continuará como sempre esteve.

O artigo foi anteriormente publicado no Observatório da Imprensa.



Venício A. de Lima é graduado em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre, doutor e pós-doutor em comunicação pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. É pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (Nemp/UnB).

Saiba mais, acesse: www.nosdacomunicacao.com