quinta-feira, 24 de setembro de 2015

SUICÍDIO: DO HORROR AO FASCÍNIO

por Tânia Maria de Souza*

Apesar do horror que circunda a cena de um suicídio, sua captura é inevitável, dada sua condição convocatória de querer saber mais sobre ela. Sobretudo é uma cena enigmática porque apresenta um sujeito desprezando a vida, diante de muitos que parecem certos em querer viver. Afinal, o homem investe a maior parte de seu tempo buscando melhores condições de vida. A ciência pretende superar seus limites prolongando o tempo de vida do homem. A máxima pretendida é vencer a morte.

Por isso se quer saber mais sobre a cena de um suicídio. Ela lança um enigma porque não há como explicar o que faz com que alguns, apenas alguns poucos, marchem de forma tão decisiva em direção contrária a todos os outros. Dizendo, talvez com um certo risco de exagero, parece que essa certeza presente na marcha de um suicida, não aparece na marcha dos demais. Nestes, ela está sempre permeada por alguns tropeços. De tempos em tempos, há um falsear de pés no qual a certeza se esvai, para novamente ser encontrada no passo seguinte, mesmo que essa pretensa certeza seja sempre provisória.

Em um suicídio a marcha é precisa, o passo não se interrompe e o ato se cumpre. Parece não haver dúvidas de que ele sabe o que quer. Saber esse reafirmado na certeza cruel de um ato que parece ser sem angústia. A angústia, conforme Lacan, não é feita de dúvida, mas ao contrário, a dúvida serve justamente para combater a angústia.[1]

Tomo a fala da esposa de um suicida para pensar como essas questões aparecem. Ela diz não conseguir entender seu ato, que há muito tempo vinha tentando se suicidar, mas alguém sempre conseguia chegar a tempo de impedi-lo. Ele dizia que queria morrer, pois somente assim sua família poderia ficar bem; não se sentia capaz de deixá-la bem, estando vivo. Conta que no dia do suicídio, ele estava tranqüilo como há muito não o via. Ele falou que se sentia bem, que tinha dormido bem a noite e que gostava muito dela e dos filhos. Saiu para seu trabalho e ela pensou aliviada que o perigo havia passado, pois parecia que ele estava realmente bem. Poucas horas depois, ela recebe a noticia de sua morte.

Esse fragmento é suficiente para demarcar os dois lados de um suicídio: o de “lá” e o de “cá”, ou seja, a posição daquele que vai e daquele que fica. O primeiro deles mostra a forma como alguns sujeitos lidam com sua castração[2], a qual nesse caso, aparece na relação que ele faz entre sua morte e o bem estar de sua família, ou seja, estando vivo não se reconhece em condições de deixá-los bem. Pelo menos não da forma como ele deveria imaginar, pois seu desabafo denuncia o que tem de insuportável em estar vivo e não conseguir... não conseguir seja lá o que for. Assim, a morte é a sua redenção, já que não foi possível fazer estando vivo, então é possível fazer estando morto. Escapa da castração de forma sacrificial, caindo fora da cena.

Esse deixar-se cair, conforme Lacan, é correlativo a passagem ao ato e encontra-se sempre do lado do sujeito quando se depara com o que ele é para o Outro[3]: objeto. E isso parece se dar em um momento de grande embaraço e de uma grande emoção, quando não se torna possível qualquer simbolização. O deixar-se cair então o lança para fora da cena, em um ato que o ejeta em um oferecimento ao Outro, como se Outro pudesse gozar (no sentido de usufruir) com sua morte. A passagem ao ato é, portanto, um agir impulsivo e inconsciente.

Certamente os que ficam, não ficarão melhores depois disso, mas aquele que foi, poderá ter sua falha perdoada, pelo menos é isso que um suicida espera, que seja reconhecido seu sacrifício e não sua inabilidade em viver e lidar com os percalços que a vida lhe deu.

O outro lado se refere a interpretação que os que ficam fazem desse ato. Quando, no caso referido, a esposa fala da tranqüilidade que seu marido demonstrava no dia do suicídio, entende-se que essa tranqüilidade advém da certeza que antecede ao ato. Como vimos anteriormente, essa certeza é própria da postura de um suicida, sendo causa de interrogações para quem deseja entender um suicídio, ou ainda de ter que se posicionar frente a tal evento trágico. Não podemos negar o fascínio com o qual somos todos envolvidos, mas por outro lado não podemos nos deixar engolfar por ele, o que resulta em um impasse: ascender ao gozo[4] do qual supostamente um suicida sabe (saber que os demais só conseguem imaginar em seus sonhos), ou salvar-se dos desígnios desse gozo pela via do horror.

Novamente nos vemos diante de um enigma que convoca a todos e o qual somente um suicida poderia decifrar. Somente ele, porque confessou sem medo das conseqüências, o seu desejo de morte como uma saída para sua vida. A tranqüilidade percebida pela esposa, conforme seu relato, talvez diga de um olhar que esteja atravessado por algo que não se encerra no limite da morte, mas que a transcende. Ou seja, é de um engano que estamos falando, o engano do suicida, que desesperançado de si mesmo busca um atalho para não ter que enfrentar os desatinos da vida. Talvez para ele este seja o caminho mais fácil. Talvez ..., talvez ..., suposições apenas, porque mais uma vez o saber permanece inapreensível, se perdendo a cada suicídio.

* Tânia Maria de Souza – Psicanalista, membro da Associação Espaço Psicanalítico e prfª do curso de Psicologia da Unijuí.

[1] Lacan, Jacques. Seminário X, lição VI, p. 10
[2] Em termos psicanalíticos, entende-se o termo castração pelas limitações, impossibilidades e fracassos que fazem parte da vida do sujeito e com os quais precisa lidar ao longo de sua vida. Alguns não conseguem.
[3] O Outro, enquanto um grande outro, não refere um outro sujeito, mas a relação de alteridade que um sujeito tem com os outros.
[4] Gozo é um termo que designa o desejo mais íntimo de todo sujeito: viver sem privações, sem frustrações, sem nenhum tipo de falta, dor ou sofrimento. Viver uma vida de plena e absoluta felicidade. Como isso é impossível para todos, o que resta ao sujeito vivo é tão somente o desejo dessa realização plena. O gozo seria então essa realização plena, o que só pode acontecer no plano da fantasia, dos sonhos.


>> Texto publicado originalmente, na Revista Afinal em janeiro/2013.


Nenhum comentário: