sábado, 4 de julho de 2015

MIRKA ALMEIDA - Homenagem

Matéria publicada na Revista Afinal em 2010. Reprisamos a matéria como homenagem à artista falecida ontem, dia 02/07/15, em Cuiabá (MT).

Um dos grandes nomes das artes plásticas do Rio Grande do Sul vive só e distante de sua paixão


por Márcio Leandro da Slva

A melhor obra está lá, quase que esquecida, como se adormecida na casa simples da Rua Joaquim Rodrigues, no bairro Cruzeiro, em Santa Rosa. Quase só, lá está a velha obra feita de lembranças, na mente de uma referência em artes plásticas no Estado, Mirka Heinze de Almeida, 80 anos. Ela própria, a melhor arte. Há três anos sem saber o que é pegar numa espátula e dar cores ao mundo feito de relevos, de vento em tela. Agora, só paisagem murcha à espera de alguém que chegue e de tantos outros que já nem lembram. As estações já foram outras entre janeiros e setembros na casa da artista, entre maios e outubros.Mas num daqueles dias em que algo acontece, numa daquelas estações estranhas, como se Primavera/Outono, Mirka viu o chão e não mais sentiu o lado direito do corpo, quase um fim se não houvesse no meio do caminho, Mirka. Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) tirou o movimento de todo o braço direito, guia mestre dos olhos e do coração da artista. Sem mão para pintar, sem Norte, ela decidiu ancorar. Descobriu-se doente e com sérios problemas de dicção. A vida, que até então era vista em detalhes, tornou-se amplidão contida pela casa, ora nas salas, ora varanda, ora no quarto, tudo dividido na mente. “Ai,ai,ai... Eu não lembro!”, repetia a artista, para perguntas simples. A senhora começou a pintar na infância? “Ai,ai,ai...”A demora é entendida, não há mais pressa, nem bagagem, nem convite para viajar pela Europa mostrando seus quadros. Muitos trabalhos da artista estão espalhados pelo mundo, adquiridos por colecionadores da boa arte, comprados em atelier italiano e alemão. Mas onde ficou Mirka e sua sensibilidade de cores do real? Ela, que era capaz de olhar e reproduzir um momento, um Bresson de saias em telas – o instante decisivo – imortalizado na imagem exposta feita de tinta e espátula. 

Nas paredes da casa verdadeiras obras de gênio, algumas já danificadas pelo tempo, pela exposição incorreta, luzes inadequadas, quadros pregados nas paredes. Falta um atelier, uma sala de exposição, um olhar urgente para não perder o que restou. Falta reconhecimento de quem pode fazer e não faz e a arte se esvai feito areia entre os dedos. Todas as manhãs Mirka tem atendimento especial, é cuidada pela vizinha que divide as atividades de zelo com um sobrinho da artista. Onde antes era lugar de tintas, quadros e mesas, agora ferramentas e peças de mecânica. Mesmo assim, com cuidado, Mirka desce da cadeira e recusa o braço como apoio, quer continuar com as próprias pernas. Da porta olha, espia por uma fresta da memória os dias em que ficava ali a maior parte do tempo, pintando entre a casa e a piscina hoje misturada às folhas trazidas pelo vento e água em tom marrom, cor de abandono em tempos de sobra. Quem vê os quadros entende. Ali tem mais que imagem, tem conteúdo. A maioria saído de paisagens reais, passeios mundo afora. Como na Alemanha, em que mulheres e seus saiões viraram arte colhendo flores num campo e até de um inverno em que a nevasca foi intensa. Ao lado, um barco, o Manoelito, aconrado num porto qualquer de Portugal. Entre as belezas expostas, a lateral de uma casa, onde a artista ficou hospedada na Argentina. Mas um lugarzinho especial na sala de estar guarda um retrato da própria Mirka feito pelas mãos da filha. Como carícia na parede um quadro com fotos dos netos e também uma Xuxa sorridente abraçada à artista, fotos-lembranças. Nem mesmo um bom observador seria capaz de notar um quadro de aproximadamente dois metros de altura ser porta de acesso à outra área da casa, ou o que aparenta ser apenas uma bela paisagem na parede, surgir como mesa de um barzinho, detalhes moldados à base de criatividade e beleza.O acúmulo de homenagens e prêmios soma uma contabilidade feliz na vida da artista e não poderia ser diferente. Na mesa da sala, Troféu Cultura Gaúcha 2004, Artista da Terra, entre outros, dão a sutileza e o significado de sua obra. “Buscava inspiração na minha própria vida e na forma de ver as coisas, a pintura foi uma maneira de expressá-las”, garante. Além da saudade dos três filhos que moram longe, Mirka sente o vazio do esquecimento, do vácuo que separa passado e presente. “Não vem ninguém. Ai,ai,ai... São poucas pessoas que vem conversar”, lamenta. Com muita dificuldade para se expressar, ela ainda afirmou: - Gostaria de estar pintando (olhos cheios de lágrimas). Mostra a mão esquerda e, com gestos, diz que não consegue. “Só com a direita, imobilizada. A esquerda não faz nada”, silencia.Mas lá está ela, na Rua Joaquim Rodrigues, no bairro Cruzeiro em Santa Rosa, em silêncio vivendo um dia depois do outro. Á espera de tantos que teimam em esquecê-la, mesmo não entendendo porque a arte é tão perturbadora, tal qual um grito nos desertos de cada um. Forte Mirka, a melhor obra.





A melhor obra está lá, quase que esquecida, como se adormecida na casa simples da Rua Joaquim Rodrigues, no bairro Cruzeiro, em Santa Rosa. Quase só, lá está a velha obra feita de lembranças, na mente de uma referência em artes plásticas no Estado, Mirka Heinze de Almeida, 80 anos. Ela própria, a melhor arte. Há três anos sem saber o que é pegar numa espátula e dar cores ao mundo feito de relevos, de vento em tela. Agora, só paisagem murcha à espera de alguém que chegue e de tantos outros que já nem lembram. As estações já foram outras entre janeiros e setembros na casa da artista, entre maios e outubros.

Mas num daqueles dias em que algo acontece, numa daquelas estações estranhas, como se Primavera/Outono, Mirka viu o chão e não mais sentiu o lado direito do corpo, quase um fim se não houvesse no meio do caminho, Mirka. Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) tirou o movimento de todo o braço direito, guia mestre dos olhos e do coração da artista. Sem mão para pintar, sem Norte, ela decidiu ancorar. Descobriu-se doente e com sérios problemas de dicção. A vida, que até então era vista em detalhes, tornou-se amplidão contida pela casa, ora nas salas, ora varanda, ora no quarto, tudo dividido na mente. “Ai,ai,ai... Eu não lembro!”, repetia a artista, para perguntas simples. A senhora começou a pintar na infância? “Ai,ai,ai...”

A demora é entendida, não há mais pressa, nem bagagem, nem convite para viajar pela Europa mostrando seus quadros. Muitos trabalhos da artista estão espalhados pelo mundo, adquiridos por colecionadores da boa arte, comprados em atelier italiano e alemão. Mas onde ficou Mirka e sua sensibilidade de cores do real? Ela, que era capaz de olhar e reproduzir um momento, um Bresson de saias em telas – o instante decisivo – imortalizado na imagem exposta feita de tinta e espátula.





Nas paredes da casa verdadeiras obras de gênio, algumas já danificadas pelo tempo, pela exposição incorreta, luzes inadequadas, quadros pregados nas paredes. Falta um atelier, uma sala de exposição, um olhar urgente para não perder o que restou. Falta reconhecimento de quem pode fazer e não faz e a arte se esvai feito areia entre os dedos.

Todas as manhãs Mirka tem atendimento especial, é cuidada pela vizinha que divide as atividades de zelo com um sobrinho da artista. Onde antes era lugar de tintas, quadros e mesas, agora ferramentas e peças de mecânica. Mesmo assim, com cuidado, Mirka desce da cadeira e recusa o braço como apoio, quer continuar com as próprias pernas. Da porta olha, espia por uma fresta da memória os dias em que ficava ali a maior parte do tempo, pintando entre a casa e a piscina hoje misturada às folhas trazidas pelo vento e água em tom marrom, cor de abandono em tempos de sobra.

Quem vê os quadros entende. Ali tem mais que imagem, tem conteúdo. A maioria saído de paisagens reais, passeios mundo afora. Como na Alemanha, em que mulheres e seus saiões viraram arte colhendo flores num campo e até de um inverno em que a nevasca foi intensa. Ao lado, um barco, o Manoelito, aconrado em águas de Portugal. Entre as belezas expostas, a lateral de uma casa, onde a artista ficou hospedada na Argentina. Mas um lugarzinho especial na sala de estar guarda um retrato da própria Mirka feito pelas mãos da filha. Como carícia na parede um quadro com fotos dos netos e também uma Xuxa sorridente abraçada à artista, fotos-lembranças.

Nem mesmo um bom observador seria capaz de notar um quadro de aproximadamente dois metros de altura ser porta de acesso à outra área da casa, ou o que aparenta ser apenas uma bela paisagem na parede, surgir como mesa de um barzinho, detalhes moldados à base de criatividade e beleza.





TROFÉU CULTURA GAÚCHA

O acúmulo de homenagens e prêmios soma uma contabilidade feliz na vida da artista e não poderia ser diferente. Na mesa da sala, Troféu Cultura Gaúcha 2004, Artista da Terra, entre outros, dão a sutileza e o significado de sua obra. “Buscava inspiração na minha própria vida e na forma de ver as coisas, a pintura foi uma maneira de expressá-las”, garante.

Além da saudade dos três filhos que moram longe, Mirka sente o vazio do esquecimento, do vácuo que separa passado e presente. “Não vem ninguém. Ai,ai,ai... São poucas pessoas que vem conversar”, lamenta. Com muita dificuldade para se expressar, ela ainda afirmou: - Gostaria de estar pintando (olhos cheios de lágrimas). Mostra a mão esquerda e, com gestos, diz que não consegue. “Só com a direita, imobilizada. A esquerda não faz nada”, silencia.

Mas lá está ela, na Rua Joaquim Rodrigues, no bairro Cruzeiro em Santa Rosa, em silêncio vivendo um dia depois do outro. A espera de tantos que teimam em esquecê-la, mesmo não entendendo porque a arte é tão perturbadora, tal qual um grito nos desertos de cada um. Forte Mirka, a melhor obra.



Texto: Márcio Leandro da Silva / Especial p/ Revista Afinal




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