sábado, 8 de novembro de 2014

Procuram-se cidadãos



Thomaz Hood Jr. na Carta Capital

Um grande país sul-americano, formidável em recursos explorados e potenciais irrealizados, é lar de mais de 200 milhões de habitantes. Habitante, como se sabe, é quem reside ou vive em determinado lugar. Entretanto, para as sociedades modernas, o que mais interessa são os cidadãos. Cidadão é outra coisa. O cidadão também habita, é certo, mas o cidadão vai além: ele tem direitos, civis e políticos, e tem deveres, para com a comunidade e o Estado.

Consta que o conceito de cidadão surgiu nas Cidades-Estado da Grécia Antiga. Naquele tempo, ser cidadão não era para qualquer um. Estrangeiros, escravos e mulheres não podiam fazer parte da seleta casta. E um homem livre podia perder o privilégio e se tornar escravo, bastava contrair dívidas ou ser derrotado na guerra. A liberdade era, por isso, muito valorizada e possibilitava a participação na vida pública. Envolver-se nos negócios da comunidade era mandatório e implicava deveres. Cumprir tais obrigações fomentava a virtude, gerava respeito e conferia honra aos cidadãos.

Séculos e séculos transformaram a ideia de cidadania. Nas sociedades contemporâneas, o conceito varia de país a país, de cultura para cultura. Em alguns recantos, espera-se que os cidadãos paguem impostos, respeitem as leis, conduzam corretamente seus negócios e defendam a nação. Deles não se espera, porém, ação política. Noutras plagas, espera-se que os cidadãos sejam atores políticos, atuando em uma das múltiplas esferas públicas. Apesar da diversidade, a essência do conceito foi mantida, espera-se que os cidadãos se comprometam com deveres para fazer jus aos seus direitos. Em nações multifacetadas em termos de religiões, etnias e culturas, a cidadania pode ser o elo a sustentar a sociedade.

Enquanto isso, na citada nação sul-americana, o cidadão, como a ararajuba e o tamanduá-bandeira, animais pátrios, parece seguir uma trilha de extinção. Abundam os habitantes, desaparecem os cidadãos. Pois por lá o habitante tornou-se um ser de direitos, muitos direitos. Seu principal direito é tirar da sociedade tudo o que pode. É um extrativista compulsivo, pouco afeito a preocupações com os outros e com o meio.

O habitante da referida nação é essencialmente um reclamante. Ele reclama da corrupção, mas não perde chance de desembolsar vinténs para facilitar sua vida. Ele reclama do trânsito, mas não estaciona o carro. O carro, aliás, é uma extensão natural do corpo do residente. Ele, o carro, define sua personalidade. O habitante lava o carro quando falta água e transita pelo acostamento quando enfrenta congestionamento. Informatizado, o habitante adora o Waze, aplicativo que troca minutos de espera por atalhos sinuosos e momentos de velocidade e fúria no trânsito, corta coletivos, avança em ruas residenciais e ameaça ciclistas. O habitante é, em suma, um ser assimétrico, sempre acima de seus pares.

O habitante do tal país é fruto e coprodutor de um sistema que ampliou a participação formal (o voto) e comercializou e emburreceu o espaço público. Conformou-se a uma mídia que cobre a política como um show de frivolidades, privilegiando celebridades em detrimento de ideias, e escândalos em lugar de realizações. No caminho, a cidadania se esvaziou e cedeu lugar à simples habitação, e a virtude do dever deu espaço à cobiça do direito. O habitante reclamante ocupou a ribalta. O cidadão constrangido saiu de cena. E os tristes trópicos penhoraram seu futuro.

O pequeno cidadão é uma simpática composição de dois sensíveis artistas do desnorteado país. A dupla busca ouvintes de tenra idade e valores em gestação. A letra é simples e cativante: Agora pode tomar banho, Agora pode sentar para comer, Agora pode escovar os dentes, Agora pega o livro, pode ler... e assim segue, com pequenos prazeres e deveres: comer chocolate e fazer a lição, pular no sofá e arrumar o quarto, sujar-se de lama e amarrar o sapato. O refrão segue a receita, simples e direto: É sinal de educação, fazer sua obrigação, para ter o seu direito de pequeno cidadão. A singela canção representa a tênue esperança de que a nova geração do citado país sul-americano reverta o desalentador quadro criado pelas hordas que a antecederam.


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