sábado, 4 de janeiro de 2014

PEQUENO EXPERIMENTO DE MUNDO

PEQUENO EXPERIMENTO DE MUNDO
Resquício de vir e estar




por Mariana Corteze*




Eis uma boa filosofia: tudo é viagem.
É viagem o que está à vista, o que se esconde,
É viagem o que se toca e o que se divinha,
É viagem o estrondo das águas caindo e esta sutil dormência que envolve os montes.

[Saramago]




O limite, a fronteira mostra-se não como uma linha a ser ultrapassada, mas como um espaço no qual o sentido pode reverberar e multiplicar-se, fragmentar-se. Entendo assim, essa fase de intercâmbio cultural como um lugar intervalar, de cruzamento onde se revela a descontinuidade e a diferença através de uma reescrita pessoal.

Pensar no que se vivencia significa transpor, é contestar a tradição local, assim venho passando por várias camadas de invenção própria e do mundo, caminhos que desconstroem meus deslocamentos. Desde que sai de Três de Maio, em 2011 e fui cursar Artes Visuais na Universidade Federal de Pelotas senti um pouco disso tudo, mas nada comparado ao que venho experienciando à cerca de um ano e meio, quando obtive a possibilidade de cruzar o Oceano Atlântico e ficar a mais de 10 mil quilômetros do meu lar.

Ao chegar em terras lusitanas, vi meus princípios cômodos imediatamente desmancharem, fui aos poucos aprendendo a olhar o panorama novo que me rodeava e defrontei com o que já fazia parte da minha cultura. Visto que não se fala mais em cultura, mas sim em culturas, quando confrontamos as visões do mundo antagônicas, os homens e suas diversas ideologias colocadas em conflito, que naturalmente resultará em algo nem sempre pacífico, devido a estranheza, a dificuldade de entendermos a alteridade (já estudada desde a antiguidade, como por exemplo Heródoto ao facear a diferença entre os gregos e os povos bárbaros, sendo sensível a diferença, a fronteira existente entre o ocidente e oriente). Deste modo, pensar o “eu” é pensar no “outro” ao qual desconhecemos, mas isso desencadeia uma variedade problemática quando nos deparamos com o fenômeno da globalização, que acaba achatando a diversidade cultural.

Portugal é um país que tem presente sua tradição em monumentos, história e cultura obtida desde os tempos da sua expansão territorial determinada pela navegação marítima e seu conjunto de descobrimentos, o que desencadeou na lenda da criação do termo “saudade”, cunhado nesta época, quando os portugueses estavam longe de suas casas e viviam em terras estranhas, já hoje vem a designar a atmosfera do povo local, como uma nação eternamente saudosa e esse princípio pode ser visualizado na arte portuguesa, como a poesia e música popular, o fado.

Às vezes sinto que parte de mim sai correndo pelas paisagens e conecta-se com o ambiente, somente com a materialidade presente e assim gosto de desmantelar a realidade imposta na visão portuguesa de que fomos descobertos e colonizados por eles, e inverto essa “verdade” me colocando imaginativamente na versão feminina e brasileira de Pedro Álvares Cabral, simplesmente procedi o caminho inverso e vim à terras desconhecidas, habitada por um povo estranho e ainda não civilizado. Pode soar um tanto brusco aludir isso, mas há muita hostilidade e juízo de valores incluso no pensamento de um português sob um imigrante brasileiro.

Toda experiência sensível de um indivíduo é agente da transfiguração identificadora e assim, posso afirmar que desde o momento em que me desloquei e agora permaneço em viagem não percorrendo apenas um país, mas também sua história, seu trajeto que constrói e reconstrói a memória e fundamenta a identidade deste povo em que convivo. Interpreto a minha habitação em Portugal de modo transitório com relações ao nomadismo e sua marca de peregrinação ao infinito, deste modo, vejo o mundo através de fragmentos, em função dos outros e em uma dimensão do mundo plural, multicultural.

Por fim, gostaria de compartilhar do sentimento de Gonçalves Dias, ao escrever a Canção do Exílio quando se encontrava em uma situação semelhante a minha, estudava direito na mesma Universidade em que estudo, morava em Coimbra e em 1843 escreveu sobre saudade de sua terra natal em contraste com a paisagem européia.



"Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.



Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.



Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.



Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar - sozinho, à noite -

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.



Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem que ainda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá."



[Gonçalves Dias]






*Mariana Corteze

Licencianda em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Licencianda em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra, Portugal
Bolsista do Programa de Licenciaturas Internacionais / CAPES.


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