quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Crônicas de NY: O paladar de quem fala inglês

(texto publicado na edição impressa da Revista Afinal #43. Acesse online, aqui ao lado)

CRÔNICAS DE NY


Por Ana Elisa* 











O paladar de quem fala inglês


Já tinha percorrido grande parte do Central Park quando, na altura da 100ª rua decidi parar a bicicleta e contemplar mais uma daquelas paisagens surpreendentes que o local reserva. Havia um pequeno lago protegido por árvores com galhos que caíam ao chão, como que em reverência a todo ambiente. Prestava atenção aos sons do cenário natural misturados aos da cidade, quando em um dado momento, avisto um senhor sentado em um banco próximo ao meu, entre umas folhagens. Ele tinha algo em suas mãos e seus movimentos eram todos voltados para esse objeto.

Procurava ser discreta ao observá-lo, pois os novaiorquinos podem ser extremamente temperamentais. Passado algum tempo, ele se levantou e veio lentamente em minha direção. Disfarcei meu desconforto. Então, quando mais próximo de mim, disse:

- Pegue essa caixinha. É sua.



E largou, no banco ao lado do que estava sentada, uma caixinha vermelha. Como estava apreensiva, não consegui respondê-lo. Mas, quem liga? Ele já estava seguindo seu caminho, decidido, e nem olhou para trás. Observei aquele senhor arqueado e de pernas afastadas uma da outra se retirar da cena, indiferente a minha reação e ao fato de deixar um objeto que foi de seu domínio com outra pessoa. Então, voltei-me para a caixinha. Passei os próximos cinco minutos, no mínimo, estudando o objeto daquela distância, que me parecia segura. 

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Cheguei em Nova York em 27 de agosto. Meu primeiro diálogo na Big Apple foi com o taxista que me levou do aeroporto até o hostel. Aquele senhor me levava em seu carro, com naturalidade e silêncio. Eu estranhei o fato dele não me perguntar de onde eu vinha, o que fazia ali, como geralmente fazem os taxistas em Porto Alegre. Mas, os papéis se inverteram e eu, que achava um saco ficar respondendo as perguntas deles, agora como turista curiosa, iniciei a conversa. Ele era do Haiti e vivia há cerca de dez anos em NY. Estranhou o fato de eu ser brasileira, porém como que lembrando de algo mais importante, logo emendou, simpático: Brasil, World Cup! Nosso diálogo discorria enquanto olhava com avidez para o mundo que se abria lá fora, ora mirando de um lado da janela, ora do outro.

Ele seria apenas o primeiro a estranhar o fato de eu ser brasileira, a julgar pela minha aparência estereotipada de branca europeia, somado ao fato do Brasil, durante muito tempo, ter vendido a imagem de um povo mestiço, simbolizada pela famosa mulata brasileira. Também seria apenas o primeiro a me falar da Copa do Mundo, a maior referência atual para os estrangeiros. Quando perguntava o que é que eles conheciam do Brasil, a maioria falava do Rio de Janeiro, São Paulo e, poucas vezes, da Bahia. O Rio Grande do Sul é praticamente inexistente para grande parte das pessoas com as quais conversei e eu, para ajudá-los, citava a Argentina e o Uruguai como lugares próximos.

Descobri que Nova Iorque está longe de ser apenas aquela cidade vendida por “Sexy and the City” - que circula apenas por Manhattan - e que os cupcakes do Magnólia Bakery (lugar badalado, que as meninas do seriado adoram ir) nem são tão bons assim, doces demais para o meu paladar. Também descobri que o famoso Pretzel – que está no ranking das comidas que “você não pode deixar de experimentar em Nova Iorque” - é horrível: seco, duro e sem sabor. Por outro lado, descobri sabores incríveis fora do mainstreem da cidade. Como na Little Italy, onde fui diversas vezes, e pude presenciar a Festa de San Genaro (a festa das festas, como eles mesmos denominam). Como toda festa/feira que se preze, a comida é um dos principais atrativos. Lá comi uma bolacha recheada, chamada Oreo (parecida com o Negresco brasileiro) em que é coberta por uma massa e logo após, frita. Calórica, porém muito gostosa. Também havia uma espécie de pastel com uma massa bem grossa, assustadora. Batatas fritas no palito, sorvetes italianos deliciosos, linguiças fritas na hora (também assustadoras), torrones em quilos, limonadas de cores variadas e coquetéis com quase nada de álcool.

Próximo dali, no SoHo, conheci um restaurante mexicano que poderia elegê-lo como meu preferido. Chamado “La Esquina”, é muito pequeno e todo decorado com pequenas lâmpadas coloridas. Tive a oportunidade de ir duas vezes. Em uma delas comi taco com guacamole acompanhado de refrigerante de tamarindo. Sim, os refrigerantes mexicanos foram, para mim, uma atração à parte. Em outra oportunidade tomei Sangria, é como um vinho de uva, sem álcool e com gás – porém existe Sangria com álcool.

Também comi em um restaurante turco, o Ali Baba, onde experimentei uma bebida chamada Ayran, feito de iogurte natural, água e sal. Quanto à comida, encontrei poucas opções vegetarianas nesse local, então acabei comendo só a entrada: pão sírio com variados molhos como o de berinjela, humus, vinagreti. Já, em um restaurante coreano, as opções para vegetarianos estavam marcadas com um 'V' no cardápio. Comi uma sopa com vários legumes. Gostei muito, apesar de ser extremamente apimentado. Aliás, quase toda comida em Nova Iorque vinha acompanhada de uma boa dose de pimenta, independente da origem.

Imagino que seja influência dos Mexicanos, que habitam a cidade com muita propriedade. Porém, esse posto não cabe só a eles, não. Todos sabemos que NY é uma mãezona que abriga gente de todos os lugares deste planeta. São pessoas que carregaram tudo que aprenderam em seus países e reproduzem de maneira fiel um pouco dessa cultura nas comunidades onde vivem atualmente e em suas lojas e restaurantes. Não se vai para NY conhecer a cultura americana crua e sim para se surpreender no metrô ao ouvir um menino de cinco anos de idade falando duas línguas fluentemente e alternando-as a cada frase. Para andar na rua e se perguntar qual língua que aquelas pessoas atrás de você estão falando. Para ouvir variedades do inglês ininteligíveis aos ouvidos, ou mesmo para ouvir um inglês que dá a certeza de que é oriundo de algum brasileiro. Para sintonizar em alguma rádio local e se surpreender com o espanglês natural e institucionalizado dos radialistas, que muito fez-me lembrar algumas rádios de Porto Mauá, cujo local já tem outra língua convencionada: o portunhol.

Dois pontos me fizeram refletir a respeito daquele mosaico cultural e linguístico: sua língua materna mantém-se latente e eles a utilizam diariamente alternada ao inglês fluente; a cultura é algo inabalável em qualquer povo, parece óbvio, visto o que vivenciamos aqui em nossa região quando vemos as etnias agrupadas e se esforçando em mantê-la viva na comunidade, porém isso me salta aos olhos com uma sensibilidade maior, hoje.

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Pois é, você pode estar se perguntando a respeito daquela caixinha, no início do texto. Levantei, peguei a bicicleta que estava escorada e saí lentamente, com um certo arrependimento, confesso. Mais distante, olho para trás e vejo um senhor que, curioso, a abriu. Tornou a fechá-la, logo em seguida, com expressão de desinteresse e seguiu seu caminho.

Assim como eu mesma fiz. Preferi criar mil histórias em minha mente, a partir do que poderia ter encontrado, a abri-la e esboçar a mesma reação.



*Ana Elisa Bobrzyk é jornalista e trabalha na assessoria de comunicação da UFFS, Câmpus Cerro Largo/RS. Em férias, rumou para Nova York e ficou por lá de 27 de agosto até 28 de setembro. Adorou! Ela vai contar tudo aqui na séria "Crônicas de NY". Acompanhe!


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