quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Rio cheio e sem peixes

por Sávio Hermes

Sei lá, parece meio ridículo, mas às vezes dá vontade de clicar em todos os e-mails recebidos, mesmo os que sabemos se tratar de ladrões de senha, de vírus que tomarão conta de nosso computador e também de nossas vidas. Acreditar que ganhei um carro do SBT e que só preciso depositar 15 mil para recebê-lo. Acreditar que aquela rapadura que o rapaz vende é para obra de caridade e que o sabão líquido é para auxiliar uma comunidade terapêutica. 

Desconfiar de tudo o tempo todo. Duvidar que a sombra seja realmente minha. Supor que no fundo todos somos bons, mesmo os ruins do pé ou os doentes da cabeça. Que aquela maldade, humor negro ou espírito de porco, seja na realidade uma visão doce de um coração maduro e não um exercício egoísta, de esperar a hora certa de executar a vingança, de comer o prato a frio, mesmo que o frio, seja no calor e o calor seja um silêncio. 

Arte de Peter Callesen.
É, como aquele pedido de querer armazenar a sua senha, que se repete automaticamente, toda vez e toda vez você diz não, até o dia em que sem querer você diz sim, mas afinal, disse sim e que interesse pode haver e que conspiração universal estaria esperando alguém dizer sim? 

E se de repente você tem um telefone fixo que não funciona. E se de repente você tem uma internet que não funciona. E se de repente a conta deste serviço vem religiosamente todos os meses e você paga, por acreditar que ninguém está lucrando exorbitantemente com sua inocência, pelo fato daquela atendente do serviço de reclamação parecer um robô, que de repente tenha um robozinho esperando por ela em casa e que o chefe dos robôs tem um controle remoto que fica apertando avançar/recuar/pausa/desliga/congela.

E se não somos todos vítimas de um sistema carnívoro? E se foi você que deixou a porta da geladeira aberta? E se o carteiro não é o maior inimigo dos cachorros? Talvez a conta não chegue, o cartão atrase, a semana não comece, mas a conta da luz continuará atrasada e quando você for ligar o ventilador vai perceber que não tem energia.

E não se trata de escuridão. Da ausência de túnel e muito menos daquela vela pálida, tremulando no final dos trilhos. Há um banco quebrado, uma árvore com os galhos secos e uma pomba equilibrando seus ovos numa caixa de ar-condicionado, enquanto você corre para perder as calorias e julga os buracos na calçada, com a certeza de que um dia seu pensamento estará distante. Mas mesmo assim todos virão lhe cobrar sentido, foco local, objetividade, criatividade, soluções para os problemas alheios e um sucesso que possa ser visto na cor de sua pele.

Não há trago para remediar. O estrago não tem cura. A fissura é devastadora e torna ociosa a vontade de sumir, virar um utensílio nano tecnológico e ser introduzido no furúnculo azul que está parado no lado iluminado da lua, nas noites marrons, que prenunciam a tempestade. Tudo certo agora. O rio está cheio e sem peixes.


S.H. 29/01/2013


Nenhum comentário: