terça-feira, 18 de novembro de 2014

PELADO, PELADO... NU COM A MÃO NO BOLSO

por Ângela Lângaro Becker*

Por baixo da etiqueta
É sempre tudo igual

Pelado todo mundo gosta
Todo mundo quer
Pelado todo mundo fica
Todo mundo é

Indecente
É você ter que ficar
Despido de cultura

Sem roupa, sem saúde
Sem casa, tudo é tão imoral
A barriga pelada
É que é a vergonha nacional

ULTRAJE A RIGOR (final dos anos 80)

Não pude deixar de aproveitar o espaço desta coluna para contribuir com mais uma tentativa de refletir sobre a nudez que insiste em surgir nas ruas da nossa cidade. Ainda neste fim de semana, enquanto debatíamos sobre o tema “Corpo e Discurso” numa Jornada de Psicanálise, mais algumas pessoas surgiram nuas em Porto Alegre e também no interior.

Que nudez é essa que quer ser vista e falada? Certamente a nudez tem a ver com todos nós. É a nossa verdade, escondida atrás das vestes. Ser visto nu não pode passar despercebido, justamente porque atinge aquele que olha nos seus valores éticos, morais. Alguns indignados, interpretam esta atitude como uma violência aos olhos, outros ficam fascinados com a liberdade que isto pode representar. Mas podemos pensar o nu como nossa natureza original. Mostrar-se como carne que veio do pó e lembrar que é para lá que voltaremos. Um corpo nu remete à nossa natureza de seres mortais.

De qualquer maneira, não é possível ignorar quando o nu se apresenta publicamente. Nosatinge naquilo que temos certeza que somos: seres civilizados. Aliás nossa vontade de progredirmos cada vez mais como civilização levou-nos, em muitos aspectos, bastante longe de nossa natureza original. De tal maneira, que não gostamos muito de lembrá-la. É bastante incômodo pensar que as fontes de energia podem se esgotar e que muito do que inventamos para tornar a vida mais confortável pode interferir nas condições de sobrevivência do próprio planeta. Gostamos da ilusão de que quanto mais pudermos inventar através do progresso científico e fizermos tudo isso circular pelas vias do capital, mais perto da realização de nossos sonhos iremos chegar. Quem sabe um dia conseguiremos ser imortais?

Freud já nos alertava em relação a esta ilusão. Enganamos-nos, dizia ele, quando negamos nossa condição de mortais. É da transitoriedade que a vida ganha sentido. É a brevidade que produz a beleza e o encantamento. Se nos lembrar disso estraga nossos sonhos, por outro lado é o que dá valor a eles. É a certeza deste limite que nos faz dar valor à vida.

Quando o progresso não considera nossa natureza original, acabamos esquecendo o que é real em nós e que insiste em surgir sem aviso, sem se submeter aos nossos sonhos. É interessante como um corpo nu diante de nossos olhos vem tirar o tapete de nossas certezas. Como assim? Que mundo é esse? Estamos numa selva? Tá todo mundo louco? Parece coisa de criança…

Talvez seja com olhos de brincadeira que possamos encarar esta manifestação. Mas estão protestando do que? Reivindincando o que? Talvez cada um dos manifestantes tenha suas razões particulares para estar participando disto. Assim como foram as manifestações de junho do ano passado, é possível que não haja uma única ideia a ser comunicada. Talvez nem se saiba bem o que se reivindica.

Se pensarmos na loucura, sempre há uma verdade nela que fica entre ser dita ou ser silenciada. O sintoma vem como essa zona de fronteira que testa nosso poder de resistência. Ele denuncia um sujeito submetido a pressões que o fazem transbordar. Mas talvez caiba a alguns, mais sensíveis e mais frágeis que outros, mostrar esse transbordamento. Por isso mesmo ganham adeptos. Algo faz sentido coletivamente nesta verdade exposta tão fora de lugar. Importante é que a forma de manifestação não visa agregar e sim propõe despir-se. Parece que nos é dada a chance de pensarmos nos excessos de nossa cultura civilizada para entendermos que vestes são estas que estão sendo deixadas pelo caminho.



Ângela Lângaro Becker é psicanalista; membro da APPOA; mestre em Psicologia Social e Institucional e doutora em Psicanálise e Dança pela Université Paris XIII. 

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