segunda-feira, 30 de julho de 2012

SIMPLES COM ESTRANHEZAS

por Vitor Ramil

Amigos,

a cena me ficou na memória com a cor do bronze, talvez por causa da iluminação, se bem que poderia não haver mais que as lâmpadas de serviço e um que outro spot de luz bruxuleante. O tempo me fez crer que no palco estavam Robertinho Silva na bateria, Luiz Alves no baixo, Wagner Tiso no piano Fender, Toninho Horta na guitarra e Nivaldo Ornelas no sax. Como a sonoridade era da família doBitches Brew, do Miles Davis, metálica e profunda, o mais provável então é que o som, e não a luz, timbrado com e pela voz do Milton, que Baudelaire poderia muito bem associar com a cor do bronze, tenha dado esse aspecto às minhas lembranças e a tudo que há nelas de imaginação.

Eu tinha lá meus treze anos, estava num camarote do Theatro Guarany, em Pelotas, e assistia ao show de lançamento do disco Minas. Milton Nascimento era naquele momento uma descoberta recente que marcaria minha vida para sempre, por sua música inventiva, livre, arriscada e por sua voz, que me levaria a descobrir minha própria voz. Eu costumava escutar aquele LP no meu quarto e depois ir cantar no corredor, que, revestido de ladrilhos hidráulicos e com pé direito alto, tinha um eco generoso. Ali, buscando aquela voz inatingível, comecei a cantar. Demorou até que eu atingisse minha própria voz, muitos anos mesmo, até porque, por muito tempo, eu me ocupei principalmente em aprender a compor, a escrever letras e literatura, a tocar violão ou a fazer arranjos. Era como se o canto, que era a coisa mais natural para mim, já estivesse resolvido. Hoje penso que, justamente por ser a coisa mais natural é que ele demorou a se definir. Esse é um assunto que prefiro desenvolver com meu analista, mas acho que foi no momento em que minha própria voz começou a se definir que todas as outras atividades seguiram nessa direção. Agora quero voltar àquela noite no Theatro Guarany. Terminado o show não vacilei em ir aos camarins tentar ver o mestre de perto. Queria chegar lá tendo algo a dizer. Decidi então convidá-lo para ficar uns dias no Sul e assistir à apresentação do Almôndegas (grupo dos meus irmãos Kleiton e Kledir, que lançava o primeiro disco) junto com Caetano Veloso e Gal Costa no Gigantinho, em Porto Alegre. Ele agradeceu o convite, disse que gostaria, mas que dificilmente poderia ficar para assistir, algo assim. Tchau, Milton, valeu.

No fim de semana seguinte, lá estava eu na platéia do Gigantinho assistindo ao show do Caetano. A certa altura ele diz: “Ficamos sabendo que tem um amigo nosso aí na platéia, Milton Nascimento. Milton, venha pra cá cantar com a gente.” A luz de um canhão percorreu o público atrás do convidado. Lá no alto de uma arquibancada estava o Milton, com seu clássico boné. Depois de atravessar a multidão, ele subiu ao palco e cantou com Caetano e Gal. Terão cantado San Vicente, Cravo e Canela, Fé Cega, Faca Amolada? A lembrança e a imaginação me dizem que sim.

Há poucos dias, quando o Milton veio ao estúdio para gravar sua participação em Foi no mês que vem, cantando comigo Não é Céu, não perdi tempo em me apresentar como aquele guri impertinente do Theatro Guarany e perguntei se ele se lembrava do episódio. “Claro”, ele respondeu, “e eu fiquei lá porque você me convidou. Eu tinha uns parentes em Porto Alegre. Fiquei na casa deles.” Eu disse que ele estava sendo gentil, mas ele insistiu: “Fiquei porque você me convidou, até então eu nem sabia do show.”

Este foi só um dos muitos momentos especiais dessa sessão de gravação, que por si só já era especial para mim. Quando o Milton canta uma canção minha é como se ela chegasse ao seu destino. “Que música linda”, ele disse sobre Não é Céu, mais de uma vez, durante os trabalhos. Numa dessas, respondi: “Aprendi contigo.” E foi isso mesmo. O Milton e também o Egberto Gismonti me enfeitiçavam com suas sequências harmônicas e seus desenhos melódicos. Nunca fui um aluno muito aplicado, os impulsos criativos e uma curiosidade por quase tudo não me deixavam parar. Por isso não me dediquei a reproduzir corretamente a complexidade do que eles faziam. Mas como também nunca tive dificuldade para inventar coisas, fui inventando as minhas harmonias e melodias deles, e comecei a compor. Claro, havia também entre os meus interesses a simplicidade lírica de que Caetano Veloso e Barbosa Lessa, entre outros, eram mestres para mim. Todos cabiam na moldura de Strawberry Fields Forever, mas não preciso me estender tanto para me fazer entender. O Carlos Moscardini, escutando Pingo à Soga, minha parceria com João da Cunha Vargas, disse que, se tivesse de definir a minha música, diria que ela é simples com estranhezas. Muito perspicaz esse Carlos. O comentário dele se aplica bem às origens que acabo de descrever. Mas voltando ao Milton...

Não é Céu é uma típica canção simples com estranhezas. Pois o Milton cantou-a com a simplicidade dos que sabem muito. Na hora de armarmos uns vocais, chamou “os primos”, como ele gosta de dizer, e mergulhou, multiplicado em muitas vozes, nas mais estranhas harmonias, levando minha canção a encontrar-se consigo mesma. Era o céu. “A coisa que eu mais gosto é de estar no estúdio ou no palco fazendo música”, ele disse. Nem precisaria ter dito. Depois de gravar ele ficou por ali com se estivesse em casa, escutando várias vezes o que acabávamos de gravar. Mais uma vez me senti próximo dele, porque também gosto de fazer isso. Fernando Pessoa disse, evidentemente que com palavras melhores e mais precisas, que o poeta é o que menos sente, já que no ato de escrever não pode ser dar ao luxo de fruir o que escreve justamente por estar ocupado em escrever. Pois a audição é o momento de puramente sentir, ainda que a gente escute como se seguisse trabalhando, como se pudesse interferir com o pensamento no que está gravado; como se fossemos poetas abstratos ainda às voltas com a escolha de palavras para versos rascunhados num papel. A verdade é que a percepção é diferente de quando estamos muito concentrados, gravando. A gente escuta o que acabou de gravar como quem recebe notícias de outro planeta. Ainda ouvirei muitas vezes o resultado dessa sessão de gravação com o Milton. Ela foi tão intensa que, com o tempo, corro o risco de começar a escutar, através dos gongos e campanas do Santiago Vazquez que soam no arranjo, a música das esferas. Depois conto para vocês com que cor tudo me ficou na memória. Milton, querido, obrigado pela tua voz e pela minha.

Até a próxima.

Abraços

V

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