sexta-feira, 19 de junho de 2015

O real surreal

por João Anschau*



Vivemos um momento diferenciado. Encontramos uma pluralidade de tribos, de cores e condições econômicas e sociais diversas, que falam a mesma língua, mas, que por vezes, não se entendem. A contemporaneidade aproximou e afastou as pessoas como nunca. A praticidade nos tornou reféns de modismos e conceitos que não sofrem nenhum tipo de contestação. A normalidade possui várias faces.

As nossas relações e os contatos mudam a cada instante. Conversas que antes eram produtivas e prazerosas tornaram-se pesadas e descambam para a vala comum. Principalmente, aquelas mantidas e concentradas na virtualidade. Mundo onde nos deparamos com a barbárie travestida de modernidade.

Outro dia lembrei-me de um colega de aula do período inicial das atividades escolares. Sou do século passado, portanto, uma época onde existia grande chance das crianças, que exerciam seu sagrado direito de ser criança, aparecerem com arranhões ou hematomas produzidos por descuidos normais para quem tinha energia de sobra para ser queimada e desconhecia limites. A ingenuidade e a curiosidade eram o combustível que nos movia.

Mas esse jovenzinho seguidamente surgia com muitos machucados. Não havia contestações, portanto, era vida que seguia para todos, inclusive para ele.

Anos mais tarde eu soube que o pai daquela criança de dez anos lhe batia diariamente. Talvez e, provavelmente, o modus operandi do “homem da casa” justificasse a agressividade do filho, figurinha carimbada na sala do diretor da escola.

Quando você lê nas redes sociais o incentivo ao uso da violência do ontem para educar crianças – a psicóloga lá em casa se chamava vara é uma das mais compartilhadas – é um sinal bem claro para que a sociedade comece a repensar seus conceitos e valores. O início pode ser feito pela compreensão do significado literal de civilidade.

Ultimamente grupos se agarram a expedientes que enxergam na bestialidade a saída para as suas frustrações. A radicalização tem sido o caminho escolhido por aqueles que colocam num liquidificador tudo o que os contraria. Esquecem propositalmente os problemas que são visíveis, crônicos e históricos. É a chamada indignação seletiva dos solidários soldados do apocalipse.

Por conta dessa histeria coletiva que toma conta de muitos, se torna cada vez mais complicada a missão de tabular uma conversa racional com aqueles que defendem o uso “moderado” – o Inmetro deve ser o órgão regulador – da violência contra seus herdeiros ou mesmo discutir as consequências de qualquer manifestação de extremismo físico. Tentar fazer o contraponto a estes expedientes condenáveis exige muita paciência. É uma tarefa hercúlea.

A intolerância é difundida como normalidade. Normalidade que avaliza a agressão ao outro, pura e simplesmente. O que mais preocupa e assusta é que segmentos importantes da sociedade avalizam comportamentos que deveriam ser condenados.

É inaceitável ainda encontrar em pleno século 21 demonstrações bem próximas a períodos onde a exceção era regra e a regra era acabar com o contraditório e tudo o que ele representava.


*João Anschau é jornalista.



>> Fale com o colunista: aj.joao@ig.com.br

**TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO Nº 50 DA REVISTA AFINAL.


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