por Otávio Vicari de Siqueira*
Ele andava a passos apertados pela rua. Com o olhar voltado
para o chão, procurava proteger o pescoço do frio vento outonal com a gola do
blazer, erguendo os ombros, um pouco encolhido, de mãos nos bolsos. Precisava
se apressar, pois o seu tempo para almoçar era curto e ele já deveria estar de
volta àquele compromisso chato, em uma cidade que não era a sua. Enjoado de ver
a laje cinza passar diante de seus olhos, levantou o olhar para contemplar um
pouco o cenário urbano. Entre gente, lixeiras e carros, do outro lado da rua
avistou uma pequena vitrine. Vinis colados ao vidro misturavam-se a cartazes clássicos
do rock. Ele parou. Há muito tempo não via uma loja daquele tipo.Uma rápida
olhada no relógio lhe dá exatos 15 minutos. Fitou a vitrine e voltou a olhar o
relógio, indeciso. Fez o mesmo mais duas vezes até sentenciar:
- Foda-se.
Atravessa a rua correndo, costurando entre os carros. Ao
chegar, abre bruscamente a velha porta do lugar, como a linha de chegada de sua
corrida.Ao fundo, de trás de um balcão, um velho levanta devagar, com uma mão
nas costas e gemendo um pouco, para ver quem havia chegado fazendo todo aquele barulho.
- E pra ti, o que era? – pergunta o velho dando uma empinada
no rosto, um pouco estúpido.
- Eu queria dar uma olhada nos discos – diz o rapaz,
apontando para uma das prateleiras.
O velho, já dando as costas, fala enquanto sai por uma portinha
nos fundos:
- Tem um toca-disco aí no canto, se quiser ouvir algum.
Seus 15 minutos viram
uma hora, entre discos que entram e saem das capas freneticamente, a caminho de
breves giros experimentais no aparelho empoeirado. Gostou de muita coisa, mas
especialmente de um antigo disco de fados portugueses. Não era exatamente o que
ele procurava, mas encantou-se com aquelas melodias. Talvez por ser diferente
do que já conhecia. Ao notar o velho voltando nos fundos da loja, levantou a
capa do disco e perguntou:
- Quanto custa esse?
- Os dessas caixas? Cinquenta pila e leva o que tu conseguir
carregar.
Mal pôde acreditar na oferta do velho. Apressou-se em enfiar
o disco preferido no meio da maior pilha que conseguiria levar.Antes de abraçar
aquele monte de discos sujos,com as capas soltando fiapos, olhou para o blazer,
comprado especialmente para a reunião daquela tarde. O que iriam pensar?
- Foda-se.
Carregou pela cidade suas relíquias nos braços, contra o
peito, como uma colegial leva seu caderno.
******************
Sua cidade, sua casa de volta. Tudo que ele queria era
desfrutar logo de sua descoberta. Afoito, passou os discos de um em um até
encontrá-lo. Ao puxar para fora da pilha, porém, achou muito leve. Estava
vazio. Trouxera só a capa. Provavelmente havia deixado no próprio toca-discos,
ansioso por pegar tudo mais que podia. Olhou para todos aqueles discos com
raiva. A culpa foi deles. Guardou tudo e não quis mais pensar naquilo por um
bom tempo.
Um ano foi tempo suficiente para perdoá-los. Certa noite animou-se
a ouvir. Escolheu, ao acaso, um antigo LP de blues. Pareceu pesado. Verificou
seu conteúdo e lá estava ele: seu disco de fado enfiado na capa errada, junto de
um vinil de blues. Riu sozinho ao descobrir, finalmente, seu erro. Ouviu. Com
muito prazer. Uma, duas, três vezes, com whisky e um sorriso. Depois, um
pouquinho tonto, procurou a capa original para enfim guardá-lo direito. “Mas
por que” – pensou ele – “se já passaram um ano juntos?”Achou que eles tinham
agora muita afinidade e decidiu não mais separá-los. Afinal, o que é um fado
senão um blues em forma de mulher?
*Otávio Vicari de Siqueira é publicitário.
Otávio V. de Siqueira |
>> Texto publicado originalmente na edição impressa nº 45 da Revista Afinal.
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