domingo, 23 de novembro de 2014

Nunca se roubou tão pouco

Por Ricardo Semler*


Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito.

Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula.

Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos “cochons des dix pour cent'', os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.

Agora tem gente fazendo passeata pela volta dos militares ao poder e uma elite escandalizada com os desvios na Petrobras. Santa hipocrisia. Onde estavam os envergonhados do país nas décadas em que houve evasão de R$ 1 trilhão –cem vezes mais do que o caso Petrobras– pelos empresários?

Virou moda fugir disso tudo para Miami, mas é justamente a turma de Miami que compra lá com dinheiro sonegado daqui. Que fingimento é esse?

Vejo as pessoas vociferarem contra os nordestinos que garantiram a vitória da presidente Dilma Rousseff. Garantir renda para quem sempre foi preterido no desenvolvimento deveria ser motivo de princípio e de orgulho para um bom brasileiro. Tanto faz o partido.

Não sendo petista, e sim tucano, com ficha orgulhosamente assinada por Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e FHC, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país.

É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo.

Votei pelo fim de um longo ciclo do PT, porque Dilma e o partido dela enfiaram os pés pelas mãos em termos de postura, aceite do sistema corrupto e políticas econômicas.

Mas Dilma agora lidera a todos nós, e preside o país num momento de muito orgulho e esperança. Deixemos de ser hipócritas e reconheçamos que estamos a andar à frente, e velozmente, neste quesito.

A coisa não para na Petrobras. Há dezenas de outras estatais com esqueletos parecidos no armário. É raro ganhar uma concessão ou construir uma estrada sem os tentáculos sórdidos das empresas bandidas.

O que muitos não sabem é que é igualmente difícil vender para muitas montadoras e incontáveis multinacionais sem antes dar propina para o diretor de compras.

É lógico que a defesa desses executivos presos vão entrar novamente com habeas corpus, vários deles serão soltos, mas o susto e o passo à frente está dado. Daqui não se volta atrás como país.

A turma global que monitora a corrupção estima que 0,8% do PIB brasileiro é roubado. Esse número já foi de 3,1%, e estimam ter sido na casa de 5% há poucas décadas. O roubo está caindo, mas como a represa da Cantareira, em São Paulo, está a desnudar o volume barrento.

Boa parte sempre foi gasta com os partidos que se alugam por dinheiro vivo, e votos que são comprados no Congresso há décadas. E são os grandes partidos que os brasileiros reconduzem desde sempre.

Cada um de nós tem um dedão na lama. Afinal, quem de nós não aceitou um pagamento sem recibo para médico, deu uma cervejinha para um guarda ou passou escritura de casa por um valor menor?

Deixemos de cinismo. O antídoto contra esse veneno sistêmico é homeopático. Deixemos instalar o processo de cura, que é do país, e não de um partido.

O lodo desse veneno pode ser diluído, sim, com muita determinação e serenidade, e sem arroubos de vergonha ou repugnância cínicas. Não sejamos o volume morto, não permitamos que o barro triunfe novamente. Ninguém precisa ser alertado, cada de nós sabe o que precisa fazer em vez de resmungar.


*RICARDO SEMLER, 55, empresário, é sócio da Semco Partners. Foi professor visitante da Harvard Law School e professor de MBA no MIT – Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA).



terça-feira, 18 de novembro de 2014

PELADO, PELADO... NU COM A MÃO NO BOLSO

por Ângela Lângaro Becker*

Por baixo da etiqueta
É sempre tudo igual

Pelado todo mundo gosta
Todo mundo quer
Pelado todo mundo fica
Todo mundo é

Indecente
É você ter que ficar
Despido de cultura

Sem roupa, sem saúde
Sem casa, tudo é tão imoral
A barriga pelada
É que é a vergonha nacional

ULTRAJE A RIGOR (final dos anos 80)

Não pude deixar de aproveitar o espaço desta coluna para contribuir com mais uma tentativa de refletir sobre a nudez que insiste em surgir nas ruas da nossa cidade. Ainda neste fim de semana, enquanto debatíamos sobre o tema “Corpo e Discurso” numa Jornada de Psicanálise, mais algumas pessoas surgiram nuas em Porto Alegre e também no interior.

Que nudez é essa que quer ser vista e falada? Certamente a nudez tem a ver com todos nós. É a nossa verdade, escondida atrás das vestes. Ser visto nu não pode passar despercebido, justamente porque atinge aquele que olha nos seus valores éticos, morais. Alguns indignados, interpretam esta atitude como uma violência aos olhos, outros ficam fascinados com a liberdade que isto pode representar. Mas podemos pensar o nu como nossa natureza original. Mostrar-se como carne que veio do pó e lembrar que é para lá que voltaremos. Um corpo nu remete à nossa natureza de seres mortais.

De qualquer maneira, não é possível ignorar quando o nu se apresenta publicamente. Nosatinge naquilo que temos certeza que somos: seres civilizados. Aliás nossa vontade de progredirmos cada vez mais como civilização levou-nos, em muitos aspectos, bastante longe de nossa natureza original. De tal maneira, que não gostamos muito de lembrá-la. É bastante incômodo pensar que as fontes de energia podem se esgotar e que muito do que inventamos para tornar a vida mais confortável pode interferir nas condições de sobrevivência do próprio planeta. Gostamos da ilusão de que quanto mais pudermos inventar através do progresso científico e fizermos tudo isso circular pelas vias do capital, mais perto da realização de nossos sonhos iremos chegar. Quem sabe um dia conseguiremos ser imortais?

Freud já nos alertava em relação a esta ilusão. Enganamos-nos, dizia ele, quando negamos nossa condição de mortais. É da transitoriedade que a vida ganha sentido. É a brevidade que produz a beleza e o encantamento. Se nos lembrar disso estraga nossos sonhos, por outro lado é o que dá valor a eles. É a certeza deste limite que nos faz dar valor à vida.

Quando o progresso não considera nossa natureza original, acabamos esquecendo o que é real em nós e que insiste em surgir sem aviso, sem se submeter aos nossos sonhos. É interessante como um corpo nu diante de nossos olhos vem tirar o tapete de nossas certezas. Como assim? Que mundo é esse? Estamos numa selva? Tá todo mundo louco? Parece coisa de criança…

Talvez seja com olhos de brincadeira que possamos encarar esta manifestação. Mas estão protestando do que? Reivindincando o que? Talvez cada um dos manifestantes tenha suas razões particulares para estar participando disto. Assim como foram as manifestações de junho do ano passado, é possível que não haja uma única ideia a ser comunicada. Talvez nem se saiba bem o que se reivindica.

Se pensarmos na loucura, sempre há uma verdade nela que fica entre ser dita ou ser silenciada. O sintoma vem como essa zona de fronteira que testa nosso poder de resistência. Ele denuncia um sujeito submetido a pressões que o fazem transbordar. Mas talvez caiba a alguns, mais sensíveis e mais frágeis que outros, mostrar esse transbordamento. Por isso mesmo ganham adeptos. Algo faz sentido coletivamente nesta verdade exposta tão fora de lugar. Importante é que a forma de manifestação não visa agregar e sim propõe despir-se. Parece que nos é dada a chance de pensarmos nos excessos de nossa cultura civilizada para entendermos que vestes são estas que estão sendo deixadas pelo caminho.



Ângela Lângaro Becker é psicanalista; membro da APPOA; mestre em Psicologia Social e Institucional e doutora em Psicanálise e Dança pela Université Paris XIII. 

A NOVA CARA DO MUSICANTO

por Hélio Barcelos*


Em suas andanças pelos Estados Unidos onde morou por alguns anos, Érico Veríssimo dizia morar numa cidade que tinha uma orquestra sinfônica. Pouco adiantaria dizer que o nome era Porto Alegre, na época, uma região pouco conhecida. Mas uma Orquestra Sinfônica, esta sim, tinha – e ainda tem - status e referências culturais importantes. Afinal, quantas cidades do Brasil têm uma? Parece razoável afirmar que, as que possuem uma orquestra tem, também, uma visão diferenciada de cultura, além de um perfil empreendedor, uma vez que os instrumentos não são gratuitos. Mas, sabe-se, por exemplo, que uma vez formada, o grupo continua precisando de afagos e cuidados. Um público fiel para assistir aos seus concertos e zelar para que ela tenha vida longa já é alguma coisa.


Não temos aqui uma OSPA, mas quem sair de Santa Rosa pode dizer que mora numa cidade que, além de berço de Xuxa e Tafarel, é, com muito mais propriedade, a cidade com um grande festival de música com alcance nacional. Mais: que tem revelado talentos e criado uma comunidade apaixonada em sua volta. Sim, ele extrapolou como evento cultural para ser também um elemento agregador. Tem o poder de reunir numa grande festa os que aqui moram e os que já se bandearam para outras cidades e que neste dia retornam para confraternizarem. Tem disso. Ele parece ter adquirido vida própria. Mas, não esqueçamos que, mesmo com todos os cuidados, ele quase desapareceu. Não tinha afinal, sete vidas como se imaginava. As crises pelas quais passou, como falta de patrocínios, esgotamento a nível de propostas, cancelamento de edições, porém, não o enfraquecerem. Ao contrário, pareceram revitalizá-lo. “Um patrimônio dessa envergadura não podia morrer na praia”, se dizia. E eis que neste ano, tal Fênix teimosa, ele renasce em novo formato e mais dinâmico que nunca. Mudar para não perecer, talvez seja o mote mais apropriado. Ampliaram-se as propostas mantendo-se a música e os shows, acrescentou-se a dança, exposições artísticas, oficinas e tudo o que se relaciona à arte - ainda a melhor resposta para muitos de nossos traumas e manias. A arte humaniza. Faz-nos ver a realidade com outros olhos, linguagem e perspectivas. Melhor assim.


A variedade de atrações no novo Musicanto, é que me pareceu decisiva. Tal restaurante famoso, interessado em mostrar a tantos quanto possível os seus melhores pratos, receitas e forma diferente no atendimento, elaborou-se um cardápio para ninguém botar defeito. Essa aconteceu no sábado. Eis que os intervalos dos shows - feitos de pura muvuca - no saguão e asfalto, são interrompidos. A atração seguinte estava prestes a começar. Local: palco interno. Obediente, o público ruma para onde o prato mais suculento da noite seria servido. A orquestra, já a postos, aguardava os “degustadores”. Dessa vez, com um menu mais sofisticado. Casa lotada, só havia lugar na parte superior do teatro. O ponto alto de tudo o que se vira nos dias anteriores iniciaria em minutos. Prato principal: músicas premiadas do festival em outros anos, com arranjos de orquestra. Se o programa terminasse naquele instante, ninguém reclamaria de nada. Nota dez para o SESI. O nosso autor de O Tempo e o Vento tinha, enfim, boas razões para dizer que sua cidade tinha algo mais para oferecer.


No fim de tudo e inebriados por uma programação cultural variada e intensa, ficamos com a impressão de que nada faltara naquela maratona de eventos. Na verdade, um banquete de encher os olhos e ouvidos, com a impressão de que algo mudara na cidade após ele... E para melhor. O Musicanto – e agora é pra valer - continua vivo. E infinitamente melhor. Não podia ser de outra forma. Descobriu-se a fórmula do sucesso. Agora...Bem, agora será cada vez melhor.


*professor.

sábado, 8 de novembro de 2014

Procuram-se cidadãos



Thomaz Hood Jr. na Carta Capital

Um grande país sul-americano, formidável em recursos explorados e potenciais irrealizados, é lar de mais de 200 milhões de habitantes. Habitante, como se sabe, é quem reside ou vive em determinado lugar. Entretanto, para as sociedades modernas, o que mais interessa são os cidadãos. Cidadão é outra coisa. O cidadão também habita, é certo, mas o cidadão vai além: ele tem direitos, civis e políticos, e tem deveres, para com a comunidade e o Estado.

Consta que o conceito de cidadão surgiu nas Cidades-Estado da Grécia Antiga. Naquele tempo, ser cidadão não era para qualquer um. Estrangeiros, escravos e mulheres não podiam fazer parte da seleta casta. E um homem livre podia perder o privilégio e se tornar escravo, bastava contrair dívidas ou ser derrotado na guerra. A liberdade era, por isso, muito valorizada e possibilitava a participação na vida pública. Envolver-se nos negócios da comunidade era mandatório e implicava deveres. Cumprir tais obrigações fomentava a virtude, gerava respeito e conferia honra aos cidadãos.

Séculos e séculos transformaram a ideia de cidadania. Nas sociedades contemporâneas, o conceito varia de país a país, de cultura para cultura. Em alguns recantos, espera-se que os cidadãos paguem impostos, respeitem as leis, conduzam corretamente seus negócios e defendam a nação. Deles não se espera, porém, ação política. Noutras plagas, espera-se que os cidadãos sejam atores políticos, atuando em uma das múltiplas esferas públicas. Apesar da diversidade, a essência do conceito foi mantida, espera-se que os cidadãos se comprometam com deveres para fazer jus aos seus direitos. Em nações multifacetadas em termos de religiões, etnias e culturas, a cidadania pode ser o elo a sustentar a sociedade.

Enquanto isso, na citada nação sul-americana, o cidadão, como a ararajuba e o tamanduá-bandeira, animais pátrios, parece seguir uma trilha de extinção. Abundam os habitantes, desaparecem os cidadãos. Pois por lá o habitante tornou-se um ser de direitos, muitos direitos. Seu principal direito é tirar da sociedade tudo o que pode. É um extrativista compulsivo, pouco afeito a preocupações com os outros e com o meio.

O habitante da referida nação é essencialmente um reclamante. Ele reclama da corrupção, mas não perde chance de desembolsar vinténs para facilitar sua vida. Ele reclama do trânsito, mas não estaciona o carro. O carro, aliás, é uma extensão natural do corpo do residente. Ele, o carro, define sua personalidade. O habitante lava o carro quando falta água e transita pelo acostamento quando enfrenta congestionamento. Informatizado, o habitante adora o Waze, aplicativo que troca minutos de espera por atalhos sinuosos e momentos de velocidade e fúria no trânsito, corta coletivos, avança em ruas residenciais e ameaça ciclistas. O habitante é, em suma, um ser assimétrico, sempre acima de seus pares.

O habitante do tal país é fruto e coprodutor de um sistema que ampliou a participação formal (o voto) e comercializou e emburreceu o espaço público. Conformou-se a uma mídia que cobre a política como um show de frivolidades, privilegiando celebridades em detrimento de ideias, e escândalos em lugar de realizações. No caminho, a cidadania se esvaziou e cedeu lugar à simples habitação, e a virtude do dever deu espaço à cobiça do direito. O habitante reclamante ocupou a ribalta. O cidadão constrangido saiu de cena. E os tristes trópicos penhoraram seu futuro.

O pequeno cidadão é uma simpática composição de dois sensíveis artistas do desnorteado país. A dupla busca ouvintes de tenra idade e valores em gestação. A letra é simples e cativante: Agora pode tomar banho, Agora pode sentar para comer, Agora pode escovar os dentes, Agora pega o livro, pode ler... e assim segue, com pequenos prazeres e deveres: comer chocolate e fazer a lição, pular no sofá e arrumar o quarto, sujar-se de lama e amarrar o sapato. O refrão segue a receita, simples e direto: É sinal de educação, fazer sua obrigação, para ter o seu direito de pequeno cidadão. A singela canção representa a tênue esperança de que a nova geração do citado país sul-americano reverta o desalentador quadro criado pelas hordas que a antecederam.